A série mais comentada do momento vai muito além de dragões e guerras: ela dá pistas valiosas de como era o trabalho dos médicos do passado
Por André Biernath, do Saúde é Vital
Não tem pra ninguém: Game of Thrones é um dos maiores fenômenos culturais da atualidade. Com um público cativo em todos os cantos do mundo, a série transmitida pela HBO é baseada na sequência de cinco livros As Crônicas de Gelo e Fogo, do escritor americano George R. R. Martin, que também atua como consultor da adaptação televisa.
De acordo com o próprio autor, boa parte da aventura está baseada em fatos que ocorreram durante a Idade Média, período que vai do século 5, com a queda do Império Romano, até o século 15, quando os turcos otomanos tomaram a cidade de Constantinopla.
A briga entre as famílias Lannister e Stark, por exemplo, é inspirada na “Guerra das Rosas”, que ocorreu na Inglaterra entre 1455 e 1485 e opôs as casas York e Lancaster. O “Casamento Vermelho”, um dos momentos mais importantes (e aterradores) da saga, se inspirou no “Jantar Negro”, em que o rei da Escócia Jaime II tramou o assassinato de um conde de quem dizia ser aliado.
Mas o que dizer da prática da medicina? Game of Thrones também traça um paralelo entre o mundo real e o imaginário? Quem deu a resposta foi o próprio Martin, durante um evento de ficção científica realizado em 2015 na cidade de Estocolmo, na Suécia:
Mesmo assim, é possível traçar alguns paralelos entre o que realmente aconteceu na História da humanidade com os fatos narrados na série. Veja abaixo algumas coincidências — e tome cuidado com os spoilers, caso não esteja atualizado nos episódios.
1. Os homens mais sábios dos sete reinos
Os meistres eram estudiosos que investiam toda a vida na busca pelo conhecimento. Treinados na Cidadela, uma espécie de universidade com uma biblioteca de tirar o fôlego, esses sábios pesquisavam sobre todas as coisas — entre elas, a medicina.
Eles usam grandes correntes no pescoço. O material do adorno definia a sua especialidade. Aqueles que carregam colares de prata eram versados nas artes da cura de doenças.
Em boa parte da Idade Média, questões de saúde eram tratadas com monges e padres que se formavam nos mosteiros. Após algum tempo, eles foram substituídos pelos barbeiros e cirurgiões, que faziam pequenos procedimentos e prescreviam as poções.
2. Alívio nas plantas
O leite de papoula é um dos remédios mais citados na série. Com ação calmante e analgésica, meistres usam para aliviar a dor de seus pacientes. Quando a morte é certa, doses mais altas também podem induzir o sono parecido a um coma, o que abrevia o sofrimento.
A papoula existe de verdade e serviu de base para o desenvolvimento de drogas como o ópio. Ela também tem poderes medicinais e inaugurou uma classe de fármacos para tratar a dor — igualzinho ao que se passa na série!
3. Quando as bactérias são mais fortes
Khal Drogo era um dos mais respeitados líderes dothraki, uma tribo de guerreiros que vive no continente de Essos. Numa batalha, ele sofreu um corte no peito bem superficial que, num primeiro momento, não causou espanto. Porém, no meio do caminho tinha uma infecção… As bactérias infestaram a ferida e derrubam Drogo.
Sua esposa Daenerys Targaryen recorreu aos poderes da bruxa Mirri Maz Duur, que fez um cataplasma de plantas medicinais. O tratamento não foi suficiente e logo veio a febre e os delírios, que transformaram o poderoso lutador num ser frágil e vulnerável.
Ao contrário do que vemos hoje, em que as doenças cardiovasculares são a causa número um de morte em todo o planeta, as infecções foram o grande terror da Idade Média. Para ter ideia, a Peste Negra tirou a vida de 75 a 200 milhões de pessoas só na Europa. O controle das bactérias só viria mesmo em 1928, quando o primeiro antibiótico foi inventado.
4. Uma mão a menos
Jaime Lannister era reconhecido como um dos espadachins mais habilidosos quando foi capturado por seus inimigos e, numa cena chocante, teve sua mão decepada. Após o trauma, ele acabou tratado por Qyburn, um cientista que foi expulso da Cidadela por fazer experimentos que infringiam as regras da comunidade.
Uma das primeiras atitudes do médico foi cauterizar a ferida e retirar parte da carne que estava apodrecendo — justamente para que não piorasse a infecção e Jaime tivesse o mesmo destino de Khal Drogo. A cauterização é utilizada até hoje em cirurgias para estancar sangramentos e permitir que órgãos e tecidos sejam reparados corretamente.
5. O fim está nas latrinas
Uma das grandes preocupações nos sete reinos era o “Fluxo Sangrento”, uma espécie de diarreia extrema. De acordo com as falas de Jorah Mormont, o senhor comandante da Patrulha da Noite, a condição chegou a matar 75% dos soldados numa das guerras que ele participou.
A falta de higiene durante o período medieval também derrubou muita gente e permitiu a transmissão em massa de várias doenças. Como não havia banheiros nas casas, as pessoas faziam suas necessidades em baldes. O conteúdo era jogado pela janela no meio da rua — azar de quem estivesse passando no momento inoportuno. Em Edimburgo, na Escócia, por exemplo, os excrementos escorriam pelas ruas até chegar a um terreno, onde formaram um enorme e nojento lago.
6. Excluídos da sociedade
Escamagris é a doença mais temida dos Sete Reinos. Indivíduos acometidos por ela ficam com uma pele grossa, dura e totalmente ressecada. Aqueles que conseguem sobreviver são obrigados a partir para o exílio e viver em cidades abandonadas, como a Antiga Valíria. Entre os personagens relevantes, a princesa Shireen Baratheon e Jorah Mormont penaram com a encrenca.
Na vida real, a hanseníase (conhecida por muitos séculos como lepra) também é marcada por feridas de pele. Ao longo da Idade Média, os pacientes eram forçados a viver afastados da população e tinham que usar um sino o tempo todo para avisar de sua chegada. Infelizmente, essa enfermidade ainda atinge alguns brasileiros. Você pode ler mais sobre ela nesse outro post que eu fiz há alguns meses.
7. Um pouco de sangue a menos
De acordo com o livro, o lorde Roose Bolton costumava colocar sanguessugas na pele para retirar um pouco de seu sangue. A senhora Melisandre de Asshai também se vale da técnica para obter um pouco do líquido vermelho de Gendry, filho bastardo do Rei Robert Baratheon.
No mundo real, a prática da sangria foi muito popular durante séculos. Os doutores do passado costumavam até prescrever sessões regulares com cortes na pele para prevenir doenças. Curiosamente, o uso de sanguessugas é reconhecido até os dias de hoje na medicina. Não existe tratamento melhor para drenar o sangue que se acumula em algumas partes do corpo, como dedos e orelhas.
8. Pênis decepados
Três personagens de Game of Thrones tiveram suas partes íntimas arrancadas: Varys, Theon Greyjoy e Verme Cinzento. Os eunucos, nome que se dá aos indivíduos que foram castrados, são figuras recorrentes em histórias do passado — até na Bíblia há relatos deles.
Na Grécia Antiga, o ato servia de punição para estupradores. No Oriente Médio e na China, eles eram responsáveis por guardar os haréns, espaços onde moravam as esposas e concubinas de reis e sultões. O traumático corte era comum em alguns lugares até o início do século 20!
Ponto para a representatividade
Em entrevista recente para o National Public Radio, dos Estados Unidos, a ativista Rebecca Cokley, diretora executiva do Conselho Nacional de Incapacidade americano, chamou atenção para o fato de que muitos dos personagens principais da série possuem algum tipo de deficiência.
Bran Stark ficou paraplégico após cair de uma torre e hoje anda de cadeira de rodas influenciando o passado e o futuro. Tyrion Lannister nasceu com nanismo e sofreu a vida toda com o desrespeito das pessoas, o que não o impediu de ter uma mente afiada e valiosa. Jaime teve uma mão decepada e, mesmo assim, segue como o principal líder de seu exército.
“Nunca tinha visto as experiências de minha vida serem retratadas com tanta exatidão”, declara Rebecca. Ela acredita que isso estimula as pessoas a encararem portadores de deficiência com mais naturalidade e acreditarem em sua capacidade de realizar grandes feitos na vida.
Foto: HBO/Divulgação