Estudo mostra que técnicas de meditação da Kundalini Yoga podem ser tão eficazes quanto remédio ou terapia frente ao transtorno obsessivo-compulsivo
Por Saúde é Vital
Imagine sair do psiquiatra com a seguinte prescrição: “Meditar uma vez ao dia, durante uma hora. Uso contínuo”.
Que lhe parece? Coisa do passado? Ou fantasia do futuro? Pois um estudo realizado pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, além de outras instituições americanas e brasileiras, acaba de mostrar que essa pode ser uma ótima recomendação para os tempos atuais.
O trabalho, recém-publicado na prestigiada revista acadêmica Frontiers in Psychiatry, constatou que pessoas com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) de moderado a grave tiveram uma redução de 40% nos sintomas depois de passarem quatro meses e meio praticando técnicas específicas de meditação da Kundalini Yoga. Trata-se de um sistema difundido no Ocidente pelo mestre indiano Yogi Bhajan — não tem a ver, portanto, com a meditação Kundalini associada ao famoso guru Osho.
Desses participantes, aqueles que continuaram na pesquisa até o fim, por mais um ano, alcançaram uma melhora de 50% nas manifestações do TOC. Três pessoas chegaram a zerar os sintomas de obsessão e compulsão. “Os resultados colocam essa prática de meditação no ranking da primeira linha de tratamento do TOC”, avalia um dos autores do estudo, Rodrigo Yacubian Fernandes, médico do Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista, e professor de Kundalini Yoga. Foi ele, aliás, quem instruiu os voluntários durante a pesquisa.
Caracterizado pela presença de pensamentos desagradáveis, repetitivos e invasivos, muitas vezes aliviados com rituais compulsivos, o TOC é usualmente tratado hoje com medicamentos antidepressivos e uma linha de psicoterapia chamada terapia cognitivo-comportamental (TCC).
Ainda que essas abordagens sejam consideradas o “padrão-ouro”, um número expressivo de pessoas não responde bem a elas. Metade dos pacientes tratados apenas com remédio e 30% dos pacientes submetidos à combinação de medicamento e psicoterapia não têm melhora significativa dos sintomas.
É nesse contexto que o achado vem sendo saudado como uma notícia e tanto. O TOC está entre as doenças de mais difícil controle e é classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das dez mais incapacitantes do planeta.
“O resultado me parece bastante encorajador, especialmente em se tratando de um tipo de intervenção que não tem risco para a saúde e possui um custo baixo”, analisa o psiquiatra e psicoterapeuta Carlos Gustavo Mansu, do Instituto de Psiquiatra da USP, que não participou do estudo.
A pesquisa avaliou o impacto da meditação Kundalini Yoga sobre o TOC e comparou seus efeitos com os de outra técnica meditativa bastante conhecida, a chamada resposta de relaxamento — esta proposta pelo cardiologista americano Herbert Benson nos anos 1970 para tratar casos leves de pressão alta.
O que é a meditação Kundalini Yoga
Trata-se de uma linha de ioga originária do noroeste da Índia e trazida para o Ocidente pelo indiano Yogi Bhajan, em 1968. Foi ele o responsável por divulgar, a partir da Califórnia, nos Estados Unidos, as quase 5 mil técnicas descritas para as mais diversas finalidades – combater o medo, enfrentar a morte, vencer a depressão, reduzir pensamentos obsessivos ou ajudar no luto, entre outras.
No Ocidente, a eficácia dessas técnicas, estabelecidas por milênios de modo empírico, passou a ser estudada academicamente na área da saúde. Hoje estão em curso pesquisas amparadas em exames de neuroimagem, marcadores biológicos rastreados pelo sangue e saliva e parâmetros clínicos chancelados pelas ciências médicas.
Segundo o médico Rodrigo Yacubian Fernandes, a Kundalini Yoga tem como aspectos marcantes uma busca intensa do estado meditativo e o frequente uso de sons (mantras) durante as práticas. Nesse sistema, as meditações também costumam ser mais dinâmicas, com movimentos das mãos, dos braços, da coluna e da cabeça, ainda que sejam feitas em postura sentada – é diferente, portanto, daquela imagem de uma pessoa de pernas cruzadas, imóvel e em silêncio o tempo todo.
Meditação à prova
O estudo contou com 48 homens e mulheres de 18 a 65 anos que tinham diagnóstico de TOC há pelo menos seis meses e passaram por avaliação com psicólogos especializados. Numa escala tradicionalmente utilizada para avaliar o grau de perturbação com sintomas obsessivos e compulsivos, com máximo de 40 pontos, todos marcaram acima de 16 ao serem admitidos, o que indica nível de moderado a grave.
Os participantes não podiam estar fazendo psicoterapia nem estar tomando remédios benzodiazepínicos (calmantes) no momento da admissão e nos seis meses anteriores, devendo se manter assim também ao longo de todo o experimento. Assim, os pesquisadores poderiam medir os efeitos da meditação sem a interferência desses fatores.
Era permitido apenas que os participantes tomassem algum medicamento da classe dos antidepressivos, normalmente prescritos no tratamento do TOC, com a dosagem estável há pelo menos três meses, sem poder mudar de remédio nem aumentar a dosagem durante o estudo — só era permitido reduzir a dose ou suspender o remédio. Os critérios de inclusão e exclusão dos voluntários foram tão rigorosos que o processo de recrutamento levou um ano.
Os participantes selecionados foram divididos em dois grupos: cada um foi instruído a praticar um tipo de meditação sem saber exatamente qual. De um lado, a Kundalini Yoga; do outro, a resposta de relaxamento. Eles participavam de encontros semanais no Instituto de Psiquiatria da USP e as práticas tinham duração de uma hora cada.
As meditações eram realizadas com as pessoas sentadas em cadeiras. Nenhuma habilidade física ou experiência prévia era necessária — poucos voluntários já tinham meditado antes. O grupo da Kundalini Yoga foi conduzido por Rodrigo Yacubian Fernandes e o grupo da resposta de relaxamento foi instruído por Marcelo Batistuzzo, psicólogo praticante dessa vertente.
As técnicas foram ensinadas no primeiro dia e, ao longo da pesquisa, eram repetidas e aprimoradas pelos participantes. No caso da meditação da Kundalini Yoga, as sessões envolviam uma sequência de 11 técnicas que incluem sons (mantras), exercícios respiratórios (pranayamas), gestos com as mãos (mudras) e movimentos com os braços e o corpo (kriyas). Na resposta de relaxamento, a prática era composta de atenção a certas partes do corpo e à respiração, combinada com a repetição mental de uma palavra — as técnicas estão descritas integralmente nos suplementos do artigo científico.
Os participantes foram solicitados a praticar em casa nos outros dias, da mesma forma que faziam com os instrutores, e deveriam marcar numa tabela quando tinham conseguido meditar e por quanto tempo. Assim foi concluída a primeira fase do estudo, durante quatro meses e meio.
Os benefícios na prática
Ao final da primeira etapa, os praticantes do grupo da resposta de relaxamento tiveram uma redução de quase 18% nos sintomas – menos da metade da melhora de 40% obtida pelo grupo da Kundalini Yoga. A avaliação foi feita novamente por psicólogos e com base em escalas.
Os pesquisadores haviam estabelecido que uma melhora significativa do TOC seria representada por uma redução de pelo menos 35% dos sintomas, um parâmetro consagrado na literatura científica por indicar um incremento perceptível no quadro dos pacientes. Além disso, uma técnica seria considerada significativamente mais eficaz que a outra nessas circunstâncias se a melhora promovida fosse 35% superior à do outro grupo.
“Os resultados da primeira fase nos deram substrato para convidar o pessoal que estava praticando a resposta de relaxamento a fazer a meditação da Kundalini Yoga também. E, a partir desse momento, nós seguimos mais um ano fazendo essa prática com todos”, conta Yacubian Fernandes.
Os participantes tiveram o grau de seus sintomas avaliados novamente aos oito meses e meio de pesquisa, depois de um ano de estudo, e ao final, com um ano e quatro meses de prática. A melhora nos sintomas se manteve, tanto para aqueles que originalmente estavam no grupo da Kundalini Yoga (50% de melhora, comparando a avaliação final com a avaliação inicial), quanto para os que haviam migrado do grupo da resposta de relaxamento (27% de melhora, a partir do momento que ingressaram no grupo da Kundalini Yoga).
Com base nesses resultados, o artigo concluiu que a meditação da Kundalini Yoga pode ser recomendada a pacientes com TOC que não têm resultados satisfatórios com os tratamentos de primeira linha (medicação e terapia cognitivo-comportamental). Inclusive sugere-se testar a meditação antes de recorrer a abordagens mais invasivas, como a estimulação cerebral profunda, atualmente considerada um último recurso.
A prática também seria útil àqueles que não querem ou podem utilizar remédios — por sofrerem com efeitos colaterais, como ganho de peso, alteração do sono ou disfunção sexual. Ou, ainda, ser empregada como recurso adicional para ampliar a resposta ao tratamento.
O que essa meditação tem de especial?
Você pode estar se perguntando: por que a meditação da Kundalini Yoga apresentou resultados tão significativos, superiores a técnicas de relaxamento? Segundo Yacubian Fernandes, as sete escalas padronizadas utilizadas para avaliar os participantes, medindo sintomas obsessivo-compulsivos, ansiedade, depressão, qualidade de vida, entre outros fatores, permitem inferir que o grau de relaxamento induzido pela Kundalini Yoga foi mais profundo. Considerando que o relaxamento atenua a ansiedade, componente central no TOC, estaria aí uma das explicações para os benefícios visualizados.
Além disso, o médico e instrutor acredita que o conjunto estruturado de técnicas da Kundalini Yoga é capaz de atuar de forma mais específica e abrangente sobre o complexo quadro de sintomas do TOC — que, além de obsessões e compulsões relacionadas a limpeza, organização, simetria, entre outros aspectos, frequentemente inclui sensações de culpa, dúvida, nojo, medo e raiva. A meditação da Kundalini Yoga teria tido, portanto, uma ação que vai além do relaxamento, comum às práticas meditativas em geral.
Há a hipótese de que uma das 11 técnicas empregadas na pesquisa, por exemplo, seja capaz de atuar em mecanismos cerebrais relacionados particularmente a obsessões e compulsões. Nessa técnica, o praticante respira apenas pela narina esquerda, contando tempos iguais para inspirar, expirar e reter o ar (assista à explicação e à demonstração da prática nos vídeos abaixo).
Essa maneira de respirar exclusivamente pela narina esquerda estimula predominantemente o hemisfério cerebral direito — o que já foi demonstrado inclusive em exames de neuroimagem. A ideia, então, é que esse estímulo cerebral específico teria um efeito atenuante sobre pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos.
“Na maioria das pessoas, o hemisfério direito do cérebro está um pouco mais relacionado com as artes, com a criatividade, com uma resposta mais relaxada no dia a dia. E o hemisfério esquerdo está mais ligado à lógica e à organização. Uma das teorias é que, no TOC, o hemisfério cerebral esquerdo está um pouco mais atuante. Então, acreditamos que, ao estimular o hemisfério cerebral direito, reduziríamos um pouco a obsessividade do hemisfério esquerdo”, conta Yacubian Fernandes. As compulsões foram os primeiros sintomas a se mostrarem reduzidos no estudo.
Nas sessões de Kundalini Yoga, alguns mantras ainda são tradicionalmente usados para minimizar estados de medo e raiva, e também para induzir o estado meditativo em si, trazendo a mente para um modo de neutralidade que ajuda a equilibrá-la. Essa neutralidade não significa “mente vazia” ou “ausência de pensamentos”.
“A meditação é um estado de consciência que não é nem o estado de vigília nem do sono nem o do sonho. Eu diria que é um quarto estado de consciência, em que a mente atinge a capacidade de entrar num estado neutro, mesmo tendo pensamentos ou algumas visualizações”, esclarece o pesquisador. “Esse estado auxilia muito todos os praticantes e também quem possui algum distúrbio, porque a mente neutra tem a capacidade de diminuir um pouco aquela aflição das fantasias que a gente nutre sobre o futuro e acabam causando ansiedade, além de diminuir aquela ruminação do passado, que muitas vezes gera sintomas depressivos.”
Os desafios no dia a dia
Tudo seriam flores ao longo do estudo não fosse o enorme desafio de manter a disciplina de uma prática frequente. Isso é traduzido pelo número de pessoas que saíram do experimento. Ao final da primeira fase, dos 24 participantes de cada grupo, 16 permaneceram no grupo da Kundalini Yoga e 11 no grupo da resposta de relaxamento. Ao término da pesquisa, restaram apenas sete participantes no total — ainda que benefícios tenham sido observados em quem ficou até a primeira fase.
Yacubian Fernandes atribui as desistências principalmente às dificuldades de locomoção dos participantes, em São Paulo, para chegar nos horários estabelecidos da meditação em grupo; ao fato de que a técnica era a mesma a se repetir toda semana; e à própria melhora do quadro de saúde dos participantes. “Algumas pessoas melhoraram, ajustaram o que precisavam e seguiram a vida… Foram promovidas, mudaram de emprego, de cidade. Isso foi muito legal, mas a gente perdeu esses dados”, comenta.
Por outro lado, entre aqueles que insistiram na prática, a adesão foi aumentando, ao longo do tempo. A frequência média aos encontros, entre aqueles que completaram a primeira fase, foi de 63%, no grupo da Kundalini Yoga, e 71%, no grupo da resposta de relaxamento. No final da segunda fase, a frequência geral foi de 75%.
O percentual de pessoas que fez a “lição de casa” também cresceu ao longo da pesquisa. “É assim mesmo que a gente vê acontecendo, como professor. Num primeiro momento, é aquela desconfiança: ‘Será que vai, não vai?’. Nesse início, precisa ter muita paciência e um baita compromisso de continuar fazendo, mesmo se achar que não está acontecendo nada”, diz o médico e instrutor.
Em geral, com 40 dias de prática, a pessoa começa a perceber os primeiros sinais de melhora. E, a partir de quatro meses, os efeitos se tornam concretos — motivando a continuidade das sessões. Que o digam os relatos dos participantes, como esse: “Eu estou fazendo uma hora de meditação por dia e tem me sobrado um belo tempo, porque antes eu perdia quatro a cinco horas com o meu transtorno, diariamente”.
Ninguém vai dizer que é fácil meditar todos os dias. Mas abrir-se à experiência, livre do mito de que é preciso “fazer a mente parar” — como se isso sequer fosse possível —, pode ser um bom começo. Aos que ficaram tentados, o psiquiatra Carlos Mansu divide o conselho que dá a seus pacientes: foque mais no processo e esqueça qualquer estado mental que você imagina ser necessário atingir. Quando você achar que não está conseguindo meditar, já estará meditando.
Ilustração: Pedro Piccinini/SAÚDE é Vital