Covid-19: os três passos do método revolucionário para criar vacinas de RNA
A pandemia de covid-19 acelerou o desenvolvimento e a testagem de um método para vacinas que até hoje não havia funcionado em humanos: o uso do RNA mensageiro (RNAm).
Por BBC News Brasil
Tanto as empresas Pfizer (EUA) e BioNtech (Alemanha) quanto a Moderna (EUA) usaram a técnica em seus imunizantes, que chegaram à terceira e última fase de testes em humanos em um tempo recorde de oito meses.
De acordo com as empresas, resultados preliminares mostraram uma eficácia superior a 95%.
Mas como é possível que isso tenha acontecido tão rápido? E, se este processo é tão eficiente, por que ninguém havia conseguido fazer uma vacina de RNA mensageiro até agora?
A resposta está na evolução da tecnologia e da pesquisa científica, segundo Norbert Pardi, imunologista e professor da Universidade da Pensilvânia, nos EUA.
Mas, também, na necessidade provocada pela pandemia.
“O desenvolvimento normal de uma vacina pode levar até 10 anos em condições normais. Primeiro porque muitas vezes nem as empresas, nem as agências reguladoras priorizam essas vacinas. Em segundo lugar, nem sempre há financiamento suficiente. Testar vacinas é muito caro, especialmente na fase 3”, disse à BBC News Brasil. Na fase 3, os pesquisadores tentam avaliar a eficácia da vacina e confirmar sua segurança em testes que costumam envolver milhares de pessoas.
“Agora, por causa da pandemia, todos querem fazer tudo mais rápido e há financiamento abundante disponível. E esse era o principal entrave. O processo químico de produção de uma vacina normalmente não leva muito tempo. 95% do tempo é gasto com a testagem.”
O método que utiliza o RNAm em vacinas também não surgiu de repente. Na verdade, começou a ser desenvolvido nos anos 1990, e deu um salto nos últimos 15 anos, com descobertas que o tornaram, pouco a pouco, mais seguro e eficiente.
O papel do RNA mensageiro
O RNA mensageiro é uma molécula surge no processo de transcrição, copiando um trecho do DNA — onde ficam nossas informações genéticas.
Ele transporta essa informação para a parte das células onde serão fabricadas as proteínas que compõem o corpo.
Os vírus de RNA — como os da gripe comum, o da dengue, Zika, o Sars-cov-2 e outros — usam o mesmo mecanismo para infectar uma célula humana e produzir cópias de seu próprio código genético.
É desta maneira que eles se replicam no nosso organismo.
A maior parte das vacinas é feita com um vírus atenuado ou com um fragmento dele, que faz com que nosso sistema imunológico produza anticorpos.
Já as vacinas gênicas, como as desenvolvidas pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna, buscam fazer o nosso próprio corpo produzir uma proteína do vírus — mas sem colocá-lo dentro de nós.
Por que o método é tão inovador?
Os cientistas criam em laboratório um RNA mensageiro sintético, que contém uma cópia de parte do código genético viral.
Esse RNAm fará com que nossas células fabriquem uma proteína característica do vírus, e é isso o que vai alertar o nosso sistema imunológico.
“Essa técnica traz algumas vantagens importantes. Primeiro, a segurança. Como ela não utiliza o vírus, não há perigo de que ela cause infecções em pessoas com a imunidade muito baixa, como pode acontecer em vacinas como a da febre amarela ou a da pólio, por exemplo. Todos podem tomar a vacina de RNAm”, diz Norbert Pardi.
“Também é uma técnica mais simples do que as outras, porque o RNA utilizado é completamente sintético. Por isso, não precisamos manter culturas celulares e sistemas de purificação complexos nos laboratórios”, explica.
De acordo com a Pfizer, o uso do RNA feito em laboratório torna a produção da vacina mais rápida em relação às vacinas convencionais, que usam vírus atenuados, por exemplo.
“Produzir a cepa correta de um vírus pode ser difícil, e produzir vírus suficiente para milhares de doses pode levar meses”, diz um comunicado da empresa.
“Como a produção de uma vacina de RNAm usa métodos sintéticos, ela pode oferecer uma abordagem mais flexível aos patógenos que estão evoluindo rapidamente, além de uma resposta mais rápida a surtos grandes ou pandemias”, afirma.
A criação da vacina
Mas desenvolver uma vacina a partir de um RNA mensageiro sintético não é tão fácil quanto pode parecer.
Para começar, segundo Pardi, o RNA é uma molécula capaz de gerar uma forte reação do sistema imunológico humano, o que pode causar uma inflamação grave e levar à morte.
“Isso ocorre porque há muitos vírus cujo material genético é composto pelo RNA. Para se proteger, os organismos foram desenvolvendo sensores de RNA. Hoje, eles estão por todo o nosso corpo”, afirma o pesquisador.
Esse era o problema que se encontrava inicialmente com as vacinas de RNA que eram testadas em animais.
“Más, há cerca de 15 anos, pesquisadores da equipe à qual eu me juntei na Universidade da Pensilvânia descobriram que trocando uma das moléculas que formam o RNAm, a uridina, pela pseudouridina, seria possível resolver isso.”
Essa substituição fez com que os sensores não conseguissem identificar o RNAm sintético da vacina como uma ameaça. Dessa forma, ele tinha passagem livre até a célula, o seu objetivo final.
De acordo com Pardi, essa descoberta foi a chave para que as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna fossem possíveis.
Outra inovação crucial foi o desenvolvimento de uma melhor capa lipídica, ou seja, de gordura, que pudesse envolver e proteger o RNA mensageiro, impedindo que ele se degradasse no caminho até as células.
“Quando eu me juntei à equipe, em 2011, eles já conseguiam produzir o RNA mensageiro modificado, mas a vacina ainda não funcionava, porque o RNA é instável. Então começamos a testar capas lipídicas feitas por empresas diferentes”, relembra o pesquisador.
A Moderna e a Pfizer dizem ter as suas próprias variações de nanopartículas lipídicas, como a tecnologia é chamada, que são patenteadas. As empresas não responderam a pedidos para explicarem a estrutura destas partículas.
Como a vacina age no corpo?
Uma vez absorvido por nossas células, o RNA mensageiro funciona como um manual de instruções para a produção da proteína do vírus, chamada de S ou Spike.
Em seguida, se desintegra completamente no organismo, já que é feito de compostos orgânicos.
A célula fabrica milhares de cópias dessa proteína e as libera na corrente sanguínea. Isso alerta as sentinelas do sistema imunológico, as células dentríticas, que localizam essas cópias e as capturam.
Quando o corpo identifica a proteína Spike como invasora, começa a produção de anticorpos e linfócitos T, que ficam à postos para defendê-lo de uma possível infecção pelo Sars-cov-2.
É assim que a vacina nos confere imunidade contra o vírus.
No entanto, ainda não se sabe quanto tempo dura a imunidade gerada pelas vacinas de RNA mensageiro.
Tanto os testes da Moderna quanto os da Pfizer começaram em 27 de julho, então os pacientes estão sendo acompanhados há apenas quatro meses.
“A imunidade provavelmente não será permanente, mas ainda não sabemos se durará seis meses, um ano ou mais. O que sabemos de estudos para vacinas contra a Sars-cov-1 e a MERS, por exemplo, é que a imunidade diminui com o tempo”, diz Pardi.
Segundo o imunologista, o que os novos estudos precisam mostrar é se a partir da vacina de RNAm o corpo se lembrará como produzir anticorpos contra o vírus no futuro.
“Isso, sim, seria importante. Com memória imunológica, talvez só seja preciso vacinar as pessoas uma vez mais, por exemplo, para garantir uma proteção mais permanente”, conclui.
Foto: Getty Images
Consumo de plásticos explode na pandemia e Brasil recicla menos de 2% do material
Plano do governo para combate ao lixo no mar está paralisado desde março.
Por BBC
Com o avanço do delivery de alimentos e do comércio eletrônico, além do maior uso de material hospitalar descartável como máscaras e luvas, o consumo de plásticos explodiu durante a pandemia do coronavírus.
O aumento do volume de lixo plástico é bastante problemático num país onde apenas 1,28% deste material é reciclado, segundo dados da WWF citados pelo Atlas do Plástico, estudo inédito realizado pela organização sem fins lucrativos alemã Fundação Heinrich Böll.
A título de comparação, o índice de reciclagem de latas de alumínio chegou a 97,6% em 2019, segundo dados da Abal (Associação Brasileira do Alumínio) e da Abralatas (Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas).
A fundação alemã chama atenção ainda para as 70 mil a 190 mil toneladas de lixo despejadas por ano no mar brasileiro pela população que vive na costa, um problema para a fauna e flora marinha, para a saúde das pessoas, comunidades tradicionais e o turismo, uma das atividades econômicas mais afetadas pela pandemia.
Política lançada pelo governo em abril de 2019 para endereçar o problema, o Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar está paralisado desde março deste ano devido à pandemia e sem previsão de retorno. Os R$ 40 milhões destinados para esta finalidade até agora não foram desembolsados.
O Atlas do Plástico, que será lançado nesta segunda-feira (30). Conforme a fundação, os dados foram verificados pela Agência Lupa.
Lixo plástico em números
Segundo o estudo, em 2018, o Brasil produziu cerca de 79 milhões de toneladas de lixo, com os plásticos representando 13,5% desse volume, ou 11,3 milhões de toneladas. O número faz do país o quarto maior produtor de resíduos plásticos do mundo.
Da parcela de lixo plástico, apenas 145 mil toneladas são recicladas, ou 1,28% do total, comparado a média global de 9% e índices de 34,6% e 21,9% nos Estados Unidos e China, respectivamente.
De todos os tipos de plástico produzidos no Brasil, o PET (sigla para polietileno tereftalato), utilizado nas garrafas de refrigerante e água mineral, é o que tem a mais alta taxa de reciclagem, chegando a 60%.
Conforme pesquisa Ibope citada pelo levantamento, também em 2018, 75% dos brasileiros não separam recicláveis. Desses, 39% não separavam o lixo orgânico dos demais. E 77% sabiam que o plástico é reciclável, mas apenas 40% de fato reciclavam o material.
Política de resíduos sólidos completa 10 anos sem efetividade
“Por um lado, temos uma enormidade de plástico sendo produzido e consumido e, por outro, há uma carência de processos de reciclagem, muito porque ainda não está efetivada de forma concreta a Política Nacional de Resíduos Sólidos”, avalia Marcelo Montenegro, coordenador do Atlas do Plástico.
Criada em 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos determinou uma série de metas com o objetivo de reduzir o impacto dos resíduos sólidos sobre o meio ambiente.
Entre elas, estavam a elaboração de planos municipais de resíduos sólidos, eliminação dos lixões, declarações anuais sobre quantidade de resíduos produzidas por região, sistemas de coleta seletiva e política de logística reversa – prática em que os próprios setores produtivos ficam responsáveis pela destinação dos resíduos produzidos pelas suas cadeias.
Dez anos depois, no entanto, o plano falhou em atingir diversos desses objetivos.
Larisse Faroni-Perez, presidente do Instituto Geração Oceano X e coautora de um dos artigos do Atlas, cita ainda como um fator de desincentivo à reciclagem no país a dupla tributação, pois os produtos plásticos são taxados no momento da produção e novamente na reciclagem.
Abiplast diz que reciclagem é maior
Questionado, o MMA (Ministério do Meio Ambiente) afirmou que “o descarte inadequado, a falta de coleta seletiva e a baixa infraestrutura para reciclagem, somados às dimensões continentais do país, que muitas vezes comprometem a viabilidade técnica e econômica, podem ser apontados como os principais motivos para o baixo índice de reciclagem”.
Já a Abiplast (Associação Brasileira da Indústria do Plástico) afirma que o estudo mais atual sobre reciclagem realizado pela consultoria MaxiQuim mostra que o Brasil reciclou 22% do plástico pós-consumo em 2018. Segundo a entidade, o índice nos Estados Unidos é de 24,2%, pouco superior à performance do mercado brasileiro.
Quanto à baixa efetividade da Política de Resíduos Sólidos após dez anos de sua implementação, o MMA diz que, apenas a partir de 2019, os principais instrumentos da política saíram do papel, citando como exemplos o SINIR (Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos), medidas de apoio a municípios e consórcios, além de sistemas de logística reversa para os setores de eletroeletrônicos, baterias automotivas de chumbo e medicamentos.
“A partir do momento que o assunto é priorizado pela gestão, como está sendo feito agora, os resultados começam a surgir”, diz a pasta.
A Abiplast, por sua vez, afirma que, apesar da existência de um acordo setorial de embalagens, que prevê a implementação do sistema de logística reversa desses itens, ainda há muito a ser feito.
“É preciso que sejam cumpridas as metas do Ministério do Meio Ambiente, é necessária uma integração das lideranças executivas de União, estados e municípios. Além disso, é necessário que essa responsabilidade seja de fato compartilhada entre todos os elos da cadeia, passando pela indústria, Executivo, Ministério Público, Estado, consumidores etc.”
Lixo no mar
Conforme o Atlas do Plástico, estudos realizados sobre a quantidade de lixo em 170 praias brasileiras mostram que a maior parte desses locais (54%) está suja ou extremamente suja.
Ainda segundo o levantamento, no ranking dos maiores poluidores do oceano por plástico, o Brasil ocupa a 16ª posição.
No entanto, destacam os autores do estudo, assim como a Política Nacional de Resíduos Sólidos, o Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar, criado em 2019 pelo governo para endereçar esse problema, também tem se mostrado nada efetivo.
“As ações do plano foram resumidas à instalação de coletores metálicos de resíduos em formatos de peixes em algumas praias e ao apoio a mutirões de limpeza. Essas ações chamam a atenção da mídia e da população, mas são extremamente ineficientes no combate ao lixo no mar”, consideram os pesquisadores.
Os autores lembram ainda que, logo após o lançamento do plano, o governo brasileiro deu um sinal contraditório, ao não assinar, em maio de 2019, acordo internacional para combater o lixo plástico no contexto da COP-14 (14ª Conferência das Partes da Convenção de Diversidade Biológica), realizada pelas Nações Unidas em Genebra, na Suíça.
Questionado sobre a paralisação do Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar desde março, devido à pandemia, o MMA informou que “as atividades, em especial as que envolvem alguma aglomeração, como os mutirões de limpeza, serão retomadas tão logo as condições sanitárias permitam”.
Quanto ao fato de os R$ 40 milhões destinados à ação ainda não terem sido desembolsados, a pasta disse que “o projeto está pronto, aprovado e orçado, porém sua implantação teve de ser postergada devido às restrições da pandemia”.
Com relação à não assinatura do acordo internacional para combate ao lixo plástico, o ministério argumenta que seu Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar “vai muito além” do acordo e “busca resultados concretos, o que muitas vezes não consta de propostas de acordos e coalizões internacionais, que muitas vezes representam apenas carta de boas intenções”.
Era para ser um sucesso’
“O Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar era para ser um sucesso”, lamenta Faroni-Perez, do Instituto Geração Oceano X.
“Ele foi desenvolvido de modo participativo, aberto para a população e com a contribuição de diversos setores. Mas ele prevê uma série de ações e medidas que precisam ser coordenadas e orquestradas. O que que foi feito até o momento não ataca o problema na raiz, o que depende da conscientização das pessoas e de políticas públicas efetivas.”
Entre essas políticas, Faroni-Perez e Montenegro destacam medidas de incentivo à redução da produção e do consumo de plásticos, como o banimento de plásticos de uso único e o incentivo do consumo através de granéis, com o uso de embalagens reaproveitáveis levadas de casa pelos consumidores.
“O problema não é o plástico em si, ele tem usos nobres. Mas o que precisa ser feito é reduzir o consumo do que não é potencialmente reciclável e manter na cadeia de valor o que é”, diz Faroni-Perez.
Foto: Reuters