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Vacina contra malária é 'conquista histórica', mas provavelmente não será usada no Brasil

Com 229 milhões de casos e 409 mil mortes apenas em 2019, a malária é uma das doenças infecciosas que mais afetou a humanidade ao longo da história. E, após décadas de pesquisa, finalmente temos uma vacina disponível contra ela.

Por BBC News Brasil

Numa coletiva de imprensa realizada nesta quarta (06/10) em Genebra, na Suíça, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou oficialmente o uso do imunizante RTS,S nas regiões do planeta com alta taxa de transmissão do Plasmodium falciparum, um dos protozoários por trás da enfermidade.

O local que mais deve se beneficiar da medida é a África Subsaariana, que concentra a vasta maioria dos casos e das mortes pela moléstia: todos os anos, mais de 260 mil crianças com menos de cinco anos que moram ali morrem de malária.

“Essa é uma conquista histórica. A tão esperada vacina contra malária é um avanço para a ciência, para a saúde infantil e para o controle desta doença”, comemorou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.

Porém, apesar de representar uma ótima notícia para todo o mundo, a vacina provavelmente não será utilizada no Brasil, que registrou cerca de 130 mil casos e menos de 30 óbitos pela enfermidade em 2020.

Isso porque o agente causador da maioria das infecções por aqui é o Plasmodium vivax, protozoário sobre o qual o novo produto aprovado não tem efeito.

O que é a malária?
Essa doença infecciosa é transmitida a partir da picada de mosquitos da família Anopheles, que são muito comuns em regiões tropicais e úmidas. Em algumas partes do Brasil, eles são conhecidos como mosquito prego.

Como explicamos acima, o agente causador é protozoário Plasmodium e há cinco tipos diferentes dele. Os mais comuns são o falciparum, o vivax e o malariae.

“O parasita causador da malária é diverso e tem uma capacidade de mutação muito grande. E isso faz com que seja quase impossível desenvolver imunidade após a infecção”, explica o infectologista André Siqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), no Rio de Janeiro.

Em lugares com muita circulação do micro-organismo, não é raro encontrar pessoas que tiveram a doença dezenas de vezes.

Após entrar no organismo humano, esse parasita viaja pela corrente sanguínea e se instala nas células do fígado. Após um tempo de maturação, ele volta ao sangue e invade as células vermelhas (também conhecidas como hemácias).

Ao longo desse processo, as células hepáticas e sanguíneas são destruídas, o que provoca sintomas como febre alta, dor de cabeça, calafrios, dor no corpo e perda de apetite.

“E vale destacar que o parasita assume diferentes formas em cada uma dessas fases, o que acarreta uma dificuldade para desenvolver vacinas com boa eficácia em todas as etapas”, observa o médico.

Na sequência, o mosquito Anopheles pica a pessoa com malária e suga o sangue infectado, criando novas cadeias de transmissão na comunidade.

A boa notícia é que a doença tem diagnóstico rápido e o tratamento é curativo, quando dado no momento correto. Ela costuma ser mais perigosa para indivíduos com o sistema imune comprometido, idosos e, principalmente, crianças, que são as principais vítimas fatais da infecção.

Como a nova vacina funciona?
A RTS,S é desenvolvida desde 1987 pela farmacêutica britânica GSK. Após os testes preliminares, o imunizante foi avaliado em ensaios clínicos envolvendo seres humanos a partir do ano 2000, com o apoio da ONG Path e da Fundação Bill e Melinda Gates.

Feito a partir de uma proteína do Plasmodium falciparum e algumas outras substâncias, a vacina atua no chamado “esporozoíto” do protozoário, que é uma forma que ele assume entre a picada do mosquito e a “viagem” até o fígado.

A título de curiosidade, esse trajeto do parasita da nossa pele até o tecido hepático costuma levar ao redor de 30 minutos.

A última etapa de estudos foi concluída em 2015. O trabalho final, publicado no periódico científico The Lancet, envolveu quase 15 mil crianças da África Subsaariana e comprovou que o produto era seguro e eficaz.

Mesmo com os resultados favoráveis, a OMS ainda tinha algumas reservas sobre a efetividade da RTS,S em larga escala. O primeiro problema tinha a ver com o esquema vacinal: para surtir efeito, é preciso aplicar quatro doses em cada indivíduo. As primeiras três são dadas no quinto, no sexto e no sétimo mês de vida. A quarta (e última) é ofertada quando o bebê completa 18 meses.

A entidade temia que esse número de aplicações poderia prejudicar o uso de outros imunizantes, dados de rotina contra outras doenças, e até traria uma falsa sensação de segurança às famílias que, sentindo-se mais protegidas, abandonariam outros métodos de prevenção da malária, como a instalação de mosquiteiros nas camas e nos berços ou a aplicação de repelentes.

Para acabar com essas dúvidas, a OMS criou em 2019 um projeto piloto em que as quatro doses da nova vacina foram aplicadas em cerca de 800 mil crianças que moram em Gana, Quênia e Malauí.

Os resultados da experiência foram considerados positivos: além de ter um bom perfil de segurança, a nova vacina preveniu 40% dos casos de malária e, ainda mais importante, reduziu em 30% as infecções mais severas, que estão relacionadas à hospitalização e morte.

“Se considerarmos que são 260 mil mortes anuais de crianças menores de cinco anos, uma redução de 30% é algo considerável”, calcula Siqueira.

É claro que essa taxa de 30 ou 40% ainda não é a ideal, mas ela significa um avanço importante e abre a possibilidade para que novos produtos, ainda mais eficazes, sejam desenvolvidos a partir de agora.

“Essa aprovação pode servir de impulso para novos financiamentos e esforços de pesquisa para soluções ainda melhores”, concorda o infectologista.

A OMS destaca outras duas observações importantes a partir da experiência de vida real nas três nações africanas: não houve um relaxamento das outras medidas preventivas (como o uso de telas na cama) e a aplicação das doses mostrou-se custo-efetiva.

“Por séculos, a malária afeta a África Subsaariana e causa um enorme sofrimento pessoal. Nós esperávamos por uma vacina efetiva e, pela primeira vez, podemos recomendar o uso de um imunizante em larga escala”, discursou a médica Matshidiso Moeti, diretora regional da OMS para a África.

“Isso representa um vislumbre de esperança para o continente que carrega o fardo mais pesado da doença e esperamos que muitas crianças que serão protegidas a partir de agora se tornem adultos saudáveis”, completou a representante.

E no Brasil?
A recomendação da OMS é que a nova vacina seja usada em regiões em que há transmissão “moderada ou alta” do Plasmodium falciparum.

No Brasil, esse não é o causador de malária mais frequente: de acordo com o Ministério da Saúde, o Plasmodium vivax representa 89% dos casos notificados no país, que se concentram especialmente na região amazônica.

“A RTS,S, portanto, não é uma vacina com aplicação no Brasil”, concorda Siqueira.

A boa notícia é que os novos casos dessa enfermidade estão em queda em nosso país.

“Dados do PNCM (Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária) mostram que no ano de 2019, o Brasil notificou 157.454 casos de malária, uma redução de 19,1% em relação a 2018, quando foram registrados 194.572 casos da doença no país”, informa um boletim publicado pelo ministério no final de 2020.

Para o infectologista da FioCruz, os casos de malária no Brasil são influenciados diretamente por dois fatores: a organização dos sistemas de saúde e as mudanças ambientais.

“Muitas vezes, uma cidade faz uma mobilização para diagnosticar e tratar a malária. Quando os casos caem, esses programas deixam de existir, o que provoca um novo aumento algum tempo depois”, observa.

“E também vemos o crescimento ocorrer em áreas de desmatamento e garimpo na Amazônia”, informa.

O Brasil possui, inclusive, um plano para acabar com a malária em território nacional. A meta é registrar menos de 14 mil casos e nenhum óbito até 2030 e eliminar completamente a transmissão do Plasmodium falciparum nos próximos nove anos.

Para alcançar isso, é preciso fortalecer os sistemas de vigilância da doença, adquirir testes rápidos de diagnóstico, ofertar tratamentos na rede pública e investir na pesquisa e no desenvolvimento de novas soluções para esse problema.

Uma saída interessante pode ser a utilização de um novo remédio chamado tafenoquina. Atualmente, a medicação precisa ser tomada por alguns dias, o que pode ser difícil para uma parcela de pacientes.

“Essa droga está sendo estudada em Manaus e em Porto Velho e, caso os resultados sejam positivos, ela pode se tornar mais ferramenta valiosa para mudar a história da malária”, avalia Siqueira.

Embora existam estudos para a criação de uma vacina contra o Plasmodium vivax, o desafio é ainda mais complexo. Um artigo de 2013 assinado por especialistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da Universidade de Zurique, na Suíça, destacam a resiliência desse parasita mais frequente em terras brasileiras.

“O Plasmodium vivax possui mecanismos sofisticados que permitem que ele fique dormente por meses ou até anos em pequenas estruturas do fígado, o que significa um enorme desafio para a erradicação da malária”, escrevem os autores.

Siqueira também entende que há menos interesse no desenvolvimento de um imunizante para o Plasmodium vivax. “Até temos alguns grupos que trabalham nessa área, mas o financiamento é muito menor”.

De acordo com o site ClinicalTrials.Gov, existem 10 testes clínicos concluídos ou em andamento com candidatos a imunizantes contra este parasita mais comum no Brasil. No caso do falciparum, mais frequente na África, são 130 registros de estudos do tipo.

Foto: Getty Images