Ácido graxo produzido por bactérias do intestino tem potencial de minimizar as consequências da infecção do vírus em crianças de até 2 anos, segundo artigo
Por Revista Galileu
Pesquisadores brasileiros identificaram na microbiota intestinal um composto com potencial para reduzir os impactos à saúde causados pelo vírus sincicial respiratório (VSR) – principal agente envolvido em infecções do trato respiratório inferior, em especial a bronquiolite, nas crianças de até 2 anos. Estima-se que o patógeno seja responsável por cerca de 100 mil mortes por ano no mundo.
O trabalho é fruto de quatro projetos apoiados pela FAPESP (18/15313-8, 20/04583-4, 17/06577-9 e 20/13689-0). Os resultados mais recentes foram divulgados na revista eBioMedicine.
Segundo o artigo, o acetato – um ácido graxo de cadeia curta produzido por bactérias do intestino – teria potencial tanto como tratamento profilático quanto para minimizar as consequências da infecção pelo VSR.
“Nós apontamos a ação antiviral dessa substância em células humanas e em animais. Além disso, correlacionamos suas concentrações com a redução de alguns sinais e sintomas causados pelo vírus em bebês”, elenca o farmacêutico Marco Aurélio Ramirez Vinolo, um dos coordenadores do estudo e professor de Imunologia do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp).
Atualmente, não há tratamento específico contra o VSR. Os profissionais manejam os sintomas e as consequências enquanto aguardam o organismo da criança se restabelecer. Em casos específicos (prematuridade, por exemplo), recomenda-se o anticorpo monoclonal Palivizumabe como forma de evitar a infecção. Esse tratamento profilático, no entanto, é caro.
“As nossas descobertas apoiam o conceito de que um produto da microbiota de baixo custo pode ter um papel no controle da infecção por VSR no trato respiratório”, escrevem os autores no artigo.
A pandemia de Covid-19 mudou o cenário de quase todas as outras infecções respiratórias virais, levando transitoriamente a uma grande diminuição de casos. Isso ocasionou, hoje, um surto de bronquiolite por VSR. Esses picos de infecções fora da temporada apresentam uma ameaça para bebês suscetíveis, o que reforça a necessidade de intervenções preventivas novas e acessíveis.
Em experimentos anteriores, os pesquisadores usaram diferentes estratégias para alterar a microbiota intestinal de camundongos – eles administravam antibióticos ou ofereciam fibras alimentares, por exemplo – e, a partir daí, avaliaram como o organismo respondia ao VSR. “Em condições nas quais a microbiota produzia maior quantidade de ácidos graxos de cadeia curta, e principalmente o acetato, havia uma maior resistência frente à infecção”, conta Vinolo. Testes aplicando o acetato em células isoladas também revelaram resultados promissores.
Mas até então os pesquisadores vinham utilizando uma cepa de VSR de laboratório, que não é igual à que circula entre humanos. Para contornar essa limitação, no estudo atual, foram colhidas amostras do vírus de duas crianças atendidas no Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Esses patógenos foram então aplicados em culturas de células tratadas previamente com acetato. Resultado: esse pré-tratamento reduziu a morte celular e diminuiu em mais de 88% a carga viral.
A avaliação dessas células também sinalizou que o acetato ativa a produção de moléculas antivirais. Entre elas, a RIG-I parece ser especialmente relevante contra o VSR. Em células cultivadas sem RIG-I, o acetato deixava de evitar o avanço da infecção.
A etapa seguinte da pesquisa utilizou aquelas mesmas cepas retiradas das crianças e as inoculou em camundongos. Uma vez infectados, eles recebiam acetato via intranasal. Mais uma vez, esse ácido graxo de cadeia curta trouxe efeitos positivos, como diminuição de mais de 93% da carga viral e da inflamação das vias aéreas. Os animais também recuperaram seu peso mais rapidamente depois do tratamento.
Com esses dados em mãos, foram recrutadas 30 crianças com menos de 12 meses internadas no Hospital São Lucas por causa do VSR. Esse foi um esforço em colaboração com os professores Ana Paula Duarte de Souza e Renato Stein, da PUC-RS. Das crianças, 17 tiveram as fezes coletadas. “Nós avaliamos a composição da microbiota intestinal e quantificamos as concentrações dos ácidos graxos de cadeia curta”, diz Vinolo.
Ao cruzar tais informações com a evolução da bronquiolite, descobriu-se que uma maior concentração de acetato estava associada a uma menor gravidade do quadro. Os bebês apresentavam maior saturação de oxigênio – um marcador de preservação da capacidade respiratória – e um menor número de dias com febre.
“Esse tipo de estudo traça uma relação, mas não garante que ela é de causa e efeito”, pondera Vinolo. “Ainda assim, é mais um argumento para avançarmos nos estudos com o acetato”, completa.
Para consolidar seus achados, a equipe coletou células das vias respiratórias superiores das crianças examinadas nessa etapa, que já estavam infectadas. Já no laboratório, essas células foram tratadas com acetato. E, de novo, houve redução da carga viral e maior atividade de moléculas antivirais.
Com a chegada da pandemia de Covid-19, a equipe realizou testes similares em laboratório, mas usando o composto contra o SARS-CoV-2. Nesse caso, efeitos positivos não foram observados. “O coronavírus é diferente do VSR. Possivelmente, as vias ativadas pelo acetato não impedem a sua ação”, explica Vinolo.
Vinolo acredita que, com as evidências acumuladas, é possível iniciar estudos clínicos para verificar a segurança e os eventuais benefícios do acetato como um medicamento preventivo ou para o controle da bronquiolite. “Vínhamos planejando isso nos últimos anos, mas a pandemia dificultou o projeto”, afirma. “A meta é começar um primeiro ensaio ainda em 2022, possivelmente com um tratamento intranasal”, completa.
A escolha pelo acetato tem motivo de ser: embora outros ácidos graxos de cadeia curta produzidos pela microbiota possuam efeitos parecidos, eles acabam não alcançando a corrente sanguínea em grandes quantidades. “Já o acetato consegue chegar em concentrações consideráveis a diferentes regiões do organismo, como os pulmões”, explica Vinolo. Daí porque a ideia seria desenvolver um fármaco à base dessa substância especificamente.
No mais, o artigo reforça o papel da microbiota intestinal no organismo e no sistema imunológico. Segundo Vinolo, é um recado importante para que as pessoas valorizem hábitos saudáveis, como uma alimentação balanceada e rica em fibras solúveis. Entre as fontes dessa substância estão: cereais (aveia, linhaça, chia), leguminosas (lentilha, feijão) e frutas (maçã e banana).
“Não sabemos ainda se a alimentação é capaz de modificar a microbiota intestinal a ponto de produzir acetato em concentrações que protegeriam as crianças. Contudo, em animais de laboratório isso foi possível”, conclui.
Foto: Solen Feyissa/ Unsplash