A Associação de Alzheimer, organização sem fins lucrativos dos EUA, publicou novos critérios para diagnosticar a doença, mas especialistas apontam riscos e possíveis conflitos de interesse financeiros
Por CNN Brasil
Com outro tratamento caro para a doença de Alzheimer aguardando uma decisão de aprovação em breve, a Associação de Alzheimer, uma organização sem fins lucrativos, publicou a versão final de seus novos critérios diagnósticos para a doença.
Pela primeira vez, os critérios pedem que os médicos que diagnosticam a doença se baseiem em biomarcadores — pedaços de beta-amiloide e proteínas tau detectados por testes laboratoriais ou em exames de imagem do cérebro — em vez de testes de memória e raciocínio feitos com papel e caneta.
A ideia por trás da mudança, segundo os autores, é detectar a condição em seus estágios mais iniciais e tratáveis, antes mesmo do desenvolvimento dos sintomas. No entanto, isso também significa que as pessoas poderiam ser diagnosticadas com Alzheimer com base apenas em um exame de sangue, mesmo que não apresentem dificuldades de memória.
Os autores argumentam que a biologia deve ser a base do diagnóstico, em vez dos sintomas. Além disso, eles dizem que o fato de uma pessoa não apresentar sintomas não significa que ela não os desenvolverá no futuro.
Mas os critérios foram criticados por especialistas externos e grupos de vigilância da indústria farmacêutica, que apontam que pessoas podem ter proteínas beta-amiloide no cérebro e no sangue sem nunca desenvolverem sintomas de demência. Eles também destacam que não há pesquisas que sustentem a ideia de que administrar medicamentos caros e arriscados antes do surgimento dos sintomas beneficiará essas pessoas a longo prazo.
Riscos e benefícios do diagnóstico precoce
Em ensaios clínicos, os novos medicamentos — que são anticorpos que reconhecem e se ligam a pedaços de beta-amiloide para removê-los do cérebro — mostraram benefícios modestos.
Peptídeos beta-amiloide são fragmentos de proteínas que formam placas pegajosas no cérebro. Juntamente com outra proteína, tau, que cria emaranhados fibrosos que bloqueiam a comunicação entre células nervosas, são considerados uma característica marcante da doença de Alzheimer.
Ainda há debate sobre o papel do beta-amiloide na doença, e alguns especialistas sustentam que as placas são uma consequência da condição, e não sua causa.
Em um estudo de 18 meses com pessoas nos estágios iniciais da doença de Alzheimer, o anticorpo lecanemab — aprovado pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA) em 2023 — retardou a taxa de declínio cognitivo em 27% em comparação com um placebo.
Também no ano passado, o medicamento experimental donanemab pareceu retardar a progressão da doença em cerca de 35% em comparação com um placebo. Este mês, um grupo de especialistas que aconselha o FDA em suas decisões de aprovação de medicamentos recomendou unanimemente a aprovação do donanemab para a doença de Alzheimer.
Os medicamentos trazem alguns riscos. À medida que removem o amiloide, podem levar ao acúmulo de fluidos, inchaço e até micro-hemorragias no cérebro, o que pode levar à hospitalização.
Ambos os ensaios foram realizados em pessoas que apresentavam sintomas iniciais de declínio de memória. Estudos que testaram anticorpos em pacientes com acúmulo de amiloide no cérebro, mas sem sintomas, não encontraram benefícios para os pacientes.
“Não há evidências para isso”, diz George Perry, neurobiólogo e editor do Journal of Alzheimer’s Disease.
Críticos dizem que os novos critérios poderiam expandir drasticamente o número de pessoas elegíveis para tomar os novos medicamentos e poderiam gerar enormes lucros para os fabricantes de medicamentos no processo.
“A Associação de Alzheimer deveria perder toda a credibilidade ao lançar diretrizes que rotulam pessoas perfeitamente normais como portadoras da doença de Alzheimer”, afirma Adriane Fugh-Berman, diretora do PharmedOut, um programa da Universidade de Georgetown que rastreia táticas de marketing farmacêutico.
“Se seguidas, essas diretrizes arruinarão a vida de dezenas de milhares de pessoas que serão mal informadas de que têm demência”, diz. “As únicas entidades que ganham com essa tragédia são as empresas farmacêuticas que fabricam medicamentos para Alzheimer e a Associação de Alzheimer, que se aproveita do medo.”
A Associação de Alzheimer diz que seus critérios são baseados nos mais recentes avanços na ciência do Alzheimer. Como as terapias para Alzheimer não foram aprovadas para pessoas sem sintomas, por enquanto, ela recomenda não realizar testes diagnósticos em pessoas sem comprometimento cognitivo, de acordo com o grupo de trabalho que desenvolveu os critérios.
“Nosso objetivo ao compartilhá-los agora — mesmo enquanto o campo e nosso conhecimento continuam a evoluir — é avançar no diagnóstico, tratamento e prevenção para melhorar o cuidado individual e reduzir o impacto social do Alzheimer”, diz Maria C. Carrillo, diretora científica e líder de assuntos médicos da Associação de Alzheimer, e autora principal dos novos critérios.
Conflitos financeiros de interesse
Os novos critérios — da principal organização de defesa dos pacientes com Alzheimer — foram desenvolvidos por um grupo de trabalho de 20 membros, muitos dos quais relataram vínculos financeiros com várias empresas que estão comercializando novos medicamentos para Alzheimer ou que têm novos medicamentos em desenvolvimento.
Um terço do painel de especialistas é diretamente empregado por empresas farmacêuticas, enquanto outro terço relatou algum outro tipo de pagamento de empresas farmacêuticas ou de testes. Dois membros do painel eram funcionários da Associação de Alzheimer, que também recebe financiamento de empresas farmacêuticas. Apenas alguns membros do grupo de trabalho declararam não ter conflitos de interesse relevantes.
“Não deveríamos confiar neste artigo que foi basicamente desenvolvido pela indústria. Não é uma prática padrão pensar em diretrizes dessa forma”, afirma Eric Widera, geriatra da Universidade da Califórnia em São Francisco, que escreveu um comentário sobre os novos critérios no Journal of the American Geriatrics Society.
Widera diz que é uma tática familiar para a indústria farmacêutica: expandir o mercado para um medicamento, primeiro ampliando a população diagnosticada com a doença que ele trata. “Isso é um aumento diagnóstico”, disse ele.
Ele cita exemplos como a campanha de conscientização “Is it low T?“, lançada pela Abbott Labs, que fabricou um produto de reposição de testosterona, bem como um teste mais sensível para o hormônio.
De maneira semelhante, a Biogen criou a campanha “It’s Time We Know” em 2021 para disseminar a conscientização sobre o comprometimento cognitivo leve após seu medicamento para Alzheimer, Aduhelm, obter uma aprovação controversa da FDA no mesmo ano. O Aduhelm foi retirado do mercado desde então.
Widera estima que até 1 em cada 10 pessoas de 50 anos, que funcionam normalmente, testaria positivo para beta-amiloide sob os novos critérios. Atualmente, cerca de 6 milhões de americanos vivem com Alzheimer, mas as estimativas sugerem que aproximadamente 40 milhões testariam positivo para beta-amiloide.
“Publicações como esta são um componente necessário de uma estratégia destinada a vender o maior número possível de anticorpos monoclonais”, afirma Karl Herrup, professor de neurobiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh.
Defendendo a necessidade de contribuição da indústria
Clifford Jack, que estuda imagens cerebrais na Clínica Mayo, liderou o desenvolvimento das novas diretrizes e diz estar orgulhoso do que o comitê alcançou.
“Eu pessoalmente escrevi cerca de 99% do texto no documento final. E eu não tenho nenhum conflito de interesse”, afirma.
A mudança nas diretrizes foi motivada, segundo os autores, pela disponibilidade dos primeiros medicamentos para retardar o progresso da doença, bem como por novos testes de sangue para proteínas amiloide e tau. Esses testes estão disponíveis para médicos e pacientes através dos laboratórios especializados que os produzem, mas não foram aprovados pela FDA, que exige uma prova rigorosa de que um teste não apresenta muitos falsos negativos ou falsos positivos antes de liberar seu uso generalizado.
Em um comentário sobre os novos critérios, publicado na sexta-feira (28) na revista Nature Medicine, membros do grupo de trabalho disseram que ele era composto por membros da indústria, medicina clínica e academia, bem como pela FDA e pelo Instituto Nacional de Envelhecimento dos EUA, para incorporar uma diversidade de pontos de vista.
“Queremos que esses critérios reflitam o melhor conhecimento científico disponível atualmente, e parte desse conhecimento está contido na indústria, que é quem está realmente conduzindo esses ensaios”, afirma Jack.
“Posso dizer honestamente que não vi nenhuma tentativa em nenhum momento por parte de um membro do comitê de inserir qualquer tipo de interesse comercial nessas diretrizes”, acrescenta.
O primeiro rascunho dos critérios, que foram apresentados pela primeira vez na Conferência Internacional da Associação de Alzheimer em 2023, observou que estavam sendo desenvolvidos como uma colaboração entre a Associação de Alzheimer e o Instituto Nacional de Envelhecimento (NIA).
Mas os novos critérios receberam críticas, e o instituto removeu seu nome do título após ter sido solicitado a fazê-lo pela administração dentro dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH). A colaboração violou uma política do NIH de não endossar entidades privadas, produtos ou serviços, de acordo com um e-mail do Instituto Nacional de Envelhecimento.
“O NIA continua a servir no grupo de trabalho e espera continuar seus esforços colaborativos com a Associação de Alzheimer e outras organizações envolvidas no grupo de trabalho”, disse a agência em um comunicado.
Desde que os critérios preliminares foram divulgados, a Associação de Alzheimer esclareceu que estes não se destinam a servir como diretrizes diagnósticas detalhadas para os clínicos. Em vez disso, os critérios são destinados a ser uma “ponte” entre a pesquisa e o consultório médico.
Novas diretrizes em desenvolvimento
A associação disse que planeja convocar um novo grupo de trabalho, com membros diferentes, para desenvolver diretrizes “práticas” para o diagnóstico de Alzheimer para médicos. Não está claro o quanto essas diretrizes serão baseadas nos critérios diagnósticos.
“Terá que ser algo muito concreto e provavelmente incluirá recomendações que descrevem produtos comerciais específicos”, afirma Jack.
A Associação de Alzheimer está comprometida com o desenvolvimento de diretrizes clínicas confiáveis “e outros tipos de orientações baseadas em evidências que informem a tomada de decisões clínicas no nível individual, do sistema de saúde e populacional”, diz o porta-voz Niles Franz.
“Um critério essencial para diretrizes confiáveis, conforme definido pela Academia Nacional de Medicina, envolve a colaboração entre um corpo organizador e painéis de especialistas clínicos e em assuntos específicos que têm conflitos mínimos tanto intelectualmente quanto financeiramente”, diz Franz em um comunicado.
“Para esse fim, a Associação recentemente estabeleceu regras para a coleta de [divulgações de conflitos de interesse] dos indicados ao painel de diretrizes, critérios para avaliar esses formulários e selecionar membros do painel, e processos para gerenciar conflitos existentes e novos durante e após o desenvolvimento das diretrizes”, acrescenta.
Franz afirma que a associação espera ter as novas diretrizes clínicas prontas para publicação até 2025.
Enquanto isso, Widera e outros dizem que a decisão de tomar um dos novos medicamentos que eliminam amiloides é altamente pessoal e deve ser feita em estreita colaboração com um médico.
“Há, eu diria, provavelmente mais controvérsia em torno dessas diretrizes do que em torno dos próprios medicamentos”, afirma Widera.
Widera diz que espera que na próxima rodada de diretrizes, a Associação de Alzheimer considere os riscos envolvidos.
“Se você vai ampliar a definição do que é uma doença, também deve dizer quais são os riscos e danos de fazê-lo”, finaliza.
Foto: Drazen Zigic/GettyImages