Tecnologia desenvolvida por pesquisadores brasileiros e estrangeiros identifica, por expressões faciais e pela fala, se há risco de um acidente vascular cerebral. O sistema está em fase de testes e poderá ser experimentado no Brasil
Por Correio Braziliense
Em casos de acidente vascular cerebral (AVC), a identificação rápida do problema é essencial para garantir a precisão do tratamento e tentar evitar sequelas. Um estudo feito no Instituto Real de Tecnologia de Melbourne (RMIT), na Austrália, em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolveu, em fase de testes, um sistema para auxiliar na detecção de sintomas de AVC. É um dispositivo, que utiliza inteligência artificial (IA), instalado no smartphone. A expectativa para testagem clínica de uma primeira versão é de 12 a 18 meses.
O sistema faz a análise da face, verificando a assimetria do rosto, a partir de eventuais sintomas indicativos de AVC. A avaliação observa o movimento muscular descrito pelo Sistema de Codificação da Ação Facial (FACs), um compilado das expressões naturais do rosto humano escrito por Paul Ekman e Wallace Friesen. O neurocirurgião Victor Hugo Espíndola disse que pedir ao paciente para sorrir é um dos métodos de identificação de sintomas.
Na base de dados dos pesquisadores, há outros oito exercícios faciais pedidos aos voluntários, além do sorriso, como simular o apagar de uma vela e beijar um bebê e além de pronunciar algumas palavras diferentes. Combinando as informações disponíveis, o sistema é capaz de determinar uma correlação entre a disposição do rosto e o quadro clínico de AVC, realizando a chamada análise de regressão.Para que esse diagnóstico seja possível em um app, há, ainda, ajustes a serem feitos nas próximas etapas de pesquisa.
Uma das questões é tornar a tecnologia compatível com diferentes sistemas de smartphone. “Temos diversos modelos inteligentes que são ‘leves’ para executar em celulares, mas precisam ser validados. Devemos estabelecer também uma configuração mínima necessária para que o sistema a ser desenvolvido execute com margem de segurança”, frisa João Paulo Papa, também da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).
Fase de testes
Os testes foram feitos com vídeos da Toronto Neuroface — base de dados proveniente da Universidade de Toronto —, que contém sequências de 11 pacientes saudáveis e 14 pós-AVC. O dispositivo identificou 91% dos casos de pacientes após o acidente e classificou corretamente 82% de todos os pacientes, saudáveis ou não. A partir de informações extraídas dos vídeos de pessoas saudáveis, o sistema faz distinção das unidades de ação padrão de assimetrias nas expressões das pessoas filmadas ao executar testes faciais pedidos.
Os cientistas querem aumentar a quantidade e a variedade dos dados utilizados e, assim, garantir a ampla aplicabilidade do sistema. O grupo é liderado por Guilherme Camargo, pesquisador da Unesp, sob supervisão dos professores João Paulo Papa e Dinesh Kumar, do RMIT. Outros três cientistas brasileiros trabalham na pesquisa publicada na revista Computer Methods and Programs in Biomedicine cujo objetivo final é disponibilizar a tecnologia baseada em IA no formato de aplicativo (app) para smartphones.
Os cientistas querem, em breve, testar o sistema em brasileiros. “Um dos passos futuros é buscar parceiros brasileiros (hospitais e clínicas) para que possamos colaborar neste sentido”, afirma Papa.
O que é o acidente vascular cerebral
O acidente vascular cerebral (AVC) é uma condição em que o cérebro é comprometido devido a falhas nas artérias que realizam o transporte de sangue no órgão. Há o AVC isquêmico, quando o fluxo normal de sangue é interrompido em consequência do entupimento de uma das artérias. O bloqueio pode ser causado por uma placa de gordura ou um coágulo de sangue, por exemplo.
Existe, ainda, o AVC hemorrágico, ocasionado pelo rompimento da artéria e transbordamento de sangue na região. Aneurisma, picos hipertensivos, trombose venosa-cerebral ou má formação venosa são algumas das causas desse tipo de derrame. Segundo especialistas, a gravidade do quadro depende diretamente do tempo transcorrido até a realização do tratamento, da quantidade de tecido cerebral prejudicado e de quais áreas do cérebro são atingidas.
Em 2023, mais de 110 mil pessoas morreram no país em decorrência de AVC, segundo dados do Portal da Transparência do Centro de Registro Civil (CRC) do Brasil. “O AVC é hoje a principal causa de morbidade no Brasil, pois acarreta sequelas físicas, muitas vezes irreversíveis para quem não foi submetido a nenhuma terapêutica”, alerta a neurologista Mikaela Aguiar.
Pacientes sedentários, obesos, hipertensos, diabéticos, tabagistas, portadores de doenças cardíacas e colesterol elevado são mais propensos a apresentar a condição. Segundo o neurocirurgião Victor Hugo Espíndola, a grande maioria dos casos seria evitada com hábitos sadios de vida.
Os médicos ressaltam que o ideal é o atendimento rápido ao paciente. “A gente tem que investigar o porquê e a causa tem que ser tratada, porque, se não, a chance de ter um outro é muito alta. A taxa de reincidência de AVC isquêmico é superior a 25%, ou seja, pelo menos um em cada quatro pacientes é acometido novamente”, diz Espíndola.
Uma série de cuidados intensivos devem ser realizados, como a drenagem de sangue, controle de pressão e controle de glicemia. Espíndola afirma que a estrutura necessária é de alta complexidade, pois “tem que ter equipe de plantão, neurocirurgião de sobreaviso, equipe de cirurgia e tomografia”. Na rede pública do Distrito Federal, a referência é o Hospital de Base.
IA é grande aliada
Os desenvolvedores do aplicativo destacam que a inteligência artificial (IA) e a tecnologia agregam aos procedimentos iniciais de diagnóstico, não são um substituto aos exames hospitalares. Uma vez disponível para baixar em smartphones, essa etapa prévia do diagnóstico seria disponibilizada para profissionais e pacientes. Segundo o pesquisador João Paulo Papa, da Unesp, a possibilidade de uso amplo é um dos objetivos do projeto. “Esperamos que o indivíduo possa fazer um automonitoramento sempre que achar necessário ou quando houver alguma suspeita”.
Entretanto, os especialistas fazem ressalvas quanto ao uso indiscriminado da ferramenta. “O app pode ser utilizado por qualquer pessoa. No entanto, profissionais da área da saúde pública comentam que é mais sensato que esteja nas mãos de clínicos e enfermeiros porque os leigos podem não saber como reagir a uma informação de emergência deste tipo”, destaca Dinesh Kumar, do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne (RMIT), que aguarda parcerias com profissionais da saúde habituados ao trabalho de emergência.
Para o neurocirurgião Vitor Hugo Espíndola, os benefícios com a utilização do sistema se sobrepõem a quaisquer possíveis inconvenientes. “Com o app, a gente poderia detectar casos de AVC, mesmo que sutis, de modo precoce e ser tratado adequadamente. De modo geral, se for um software muito sensível, que tenha mais tendência a acusar falsos quadros positivos, não tem risco”, observa o neurocirurgião. Mikaela Aguiar, neurologista do Hospital Santa Marta de Taguatinga, acrescentando que a educação das pessoas leigas para o reconhecimento dos sintomas é um fator relevante para que se possa fazer o uso da tecnologia em si.
Em caso de dúvida, a melhor escolha “é sempre procurar um atendimento hospitalar o mais rápido possível para confirmar ou não essa possibilidade”, completa Aguiar. Outros modelos de aplicativo, que auxiliam na identificação do AVC, estão sendo desenvolvidos, ou já estão disponíveis, mas com funcionalidades diferentes da proposta pela parceria da Unesp e do RMIT. Os autores citam, por exemplo, o Stroke Riskometer criado na Nova Zelândia, que permite aos usuários calcularem sua propensão ao AVC com base em informações pessoais e hábitos de vida.
Já nos Estados Unidos (EUA), a Universidade da Califórnia conta com dois projetos de auxílio diagnóstico. Um deles é utilizado no Centro Médico Davis, em Sacramento, para análise de tomografias de suspeitas de AVC. O outro, chamado FAST AI, pretende fazer a identificação da assimetria facial por vídeo e da fala arrastada, mas também está em fase de desenvolvimento e não teve seus resultados publicados em periódicos científicos por enquanto, apesar de apresentado em um congresso relacionado ao tema nos EUA em fevereiro de 2023.(K.S.)
Foto: Seamus Daniel/RMIT