Aprovado há quase 20 anos, Reator Multipropósito Brasileiro deve ficar pronto em 2030 e promete alavancar produção nacional de radiofármacos e o mercado de medicina nuclear
Por Futuro da Saúde
A área de medicina nuclear e produção de radiofármacos vive um boom global. A especialidade consiste na introdução de pequenas quantidades de materiais radioativos – os radiofármacos – no corpo para realizar imagens, diagnosticar e tratar doenças. Enquanto no mundo gigantes farmacêuticas estão desenvolvendo negócios e adquirindo empresas do setor, o Brasil em breve terá um projeto para participar desse jogo: a construção do projeto do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) terá início em setembro e deve ser concluída em 2030.
É o que aponta Wilson Calvo, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Aprovado desde 2008, a instalação pretende ser o centro de pesquisa em tecnologia nuclear mais importante do Brasil e aumentar o acesso da população à medicina nuclear, por meio da produção nacional de radiofármacos. “É uma questão de soberania que nós precisamos. Vamos conseguir reduzir o preço do produto final e ampliar o acesso. Isso realmente nos dá muito orgulho em relação a esse projeto e estamos conseguindo avançar bastante agora”, afirma.
A medicina nuclear pode ser aplicada em diversas áreas, como cardiologia, endocrinologia, nefrologia, oncologia e, mais recentemente, na neurologia. A especialidade se destaca pelos baixos efeitos colaterais, procedimentos seguros, praticamente indolores e não invasivos. O médico especialista e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), Rafael Lopes, explica que o material radioativo é depositado em substâncias conhecidas para analisar a distribuição delas pelo organismo. Por exemplo, a glicose pode ser marcada com um radiofármaco e inserida no corpo para observar onde ela é mais utilizada, assim é possível identificar anomalias como tumores que utilizam muita glicose para se multiplicar.
Ele ressalta também a capacidade da medicina nuclear de determinar a extensão de uma doença com precisão. Segundo Lopes, a avaliação do grau de disseminação é essencial para determinar a eficácia do tratamento, guiar decisões médicas, reduzir custos e priorizar o bem-estar do paciente. “Com isso podemos decidir fazer um tratamento mais definitivo, curativo ou mais paliativo. Permite que eu tenha decisões mais adequadas e racionais”, diz.
Medicina nuclear e produção nacional de radiofármacos
O Brasil possui mais de 400 serviços de medicina nuclear, entre clínicas, hospitais e centros de pesquisa. Contudo, segundo o diretor, atualmente o país gasta 20 milhões de dólares (cerca de R$110 milhões) na importação de radioisótopos, matéria-prima para produção de radiofármacos. Com o RMB a ideia é passar a produzi-los nacionalmente para que sejam processados e distribuídos pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Assim, além de trazer economia para o país, a expectativa é que o reator deve baratear o mercado da medicina nuclear e reduzir os riscos de desabastecimento.
Considerado estratégico pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o RMB está orçado em R$ 2,5 bilhões. Desde a sua aprovação, foram investidos cerca de R$300 milhões, utilizados para definição do local e para obtenção de autorizações e licenças. Em 2023, o projeto foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e recebeu um financiamento programado de R$1,5 bilhão pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Além das aplicações em saúde, a produção nacional de radioisótopos deve beneficiar outros setores da indústria, além de agricultura e meio ambiente. Por isso, o RMB vai ser construído em um terreno de dois milhões de metros quadrados próximo ao município de Iperó, no interior de São Paulo, com capacidade para grande infraestrutura de laboratórios e instalações de suporte para pesquisadores.
Durante muito tempo a produção, comercialização e utilização de radioisótopos no Brasil esteve em monopólio estatal, contudo, nos últimos anos, o mercado foi aberto para a iniciativa privada. Em 2006 a Emenda Constitucional nº 49 flexibilizou a legislação para o uso dos elementos de meia-vida curta de até duas horas, ou seja, radioisótopos que tem sua atividade radioativa reduzida pela metade nesse período. O objetivo era suprir a demanda, já que a curta duração desses radiofármacos aumenta a complexidade de transporte e distribuição. Mais recentemente, em 2022, houve a flexibilização dos radioisótopos de meia-vida longa através da Emenda Constitucional nº 118.
Apesar das mudanças, o diretor da CNEN, Wilson Calvo, relata que os institutos públicos ainda detêm cerca de 85% do mercado de produção de radiofármacos e apenas o IPEN produz esses elementos de longa duração. “Sabemos do interesse do setor privado, pois além de ser estratégico, é um mercado muito atraente. No entanto, ele não é simples, o custo de investimento inicial é alto e os investimentos para obter todas as autorizações é elevado”, diz o diretor.
Desafios para o crescimento do setor de medicina nuclear
Um dos principais desafios enfrentados na área da medicina nuclear é a ampliação do acesso. Conforme a SBMN, são realizados cerca de dois milhões de procedimentos por ano no Brasil que consistem basicamente em exames de imagem e um número muito pequeno de tratamentos. Para atender a demanda, Rafael Lopes acredita que esse número deveria ser no mínimo o dobro.
“Hoje, 6% dos serviços de medicina nuclear são exclusivamente públicos. Mais de 94% são serviços privados e quase a totalidade deles atendem pacientes do SUS. Então a gente tem acesso, mas com limitações, porque os custos são elevados”, comenta. Por exemplo, o exame PET-CT, capaz de detectar tumores em todos os lugares do corpo, custa em média R$2.102, segundo estudo da FGV de 2023.
Além disso, o médico especialista e membro da Associação Nacional de Empresas de Medicina Nuclear (ANAEMN), Marcos Villela, aponta que, fora a falta de produção nacional, questões mercadológicas e logísticas colocam dificuldades de crescimento para o setor. Para o médico, uma delas é a tabela de pagamentos do SUS que não sofre ajustes desde 2009 para procedimentos de medicina nuclear: “Temos uma dependência muito grande do mercado externo, com equipamentos pagos em dólar. Como nós vamos sobreviver a uma tabela de 15 anos atrás? No final quem perde são os pacientes, pois com uma remuneração muito abaixo do mercado, cada vez menos empresas particulares vão atender o SUS.”
Para o médico Álvaro Barroso, também membro da ANAEMN, outro desafio enfrentado na área é o excesso de regulação e taxação. Para ele, isso impede a importação de materiais e equipamentos, visto que a carga tributária pode chegar até 80% em alguns aparelhos médicos. “Desse modo, a compra de aparelhos mais modernos fica inviabilizada. É um contrassenso não conseguir comprar por questões de impostos”, relata Barroso.
Apesar dos desafios, a SBMN acredita que é possível expandir o mercado em até cinco vezes nos próximos dez a quinze anos, mas para isso é preciso que ele se mantenha firme. “Precisamos de mais produtores e fornecedores. As pessoas às vezes não sabem como a área nuclear pode impactar positivamente na vida delas. Sabemos que as técnicas não são baratas, mas elas têm se mostrado efetivas”, afirma Lopes.
O estudo da FGV projeta para 2036 um faturamento de R$536 milhões e a realização de 3,6 milhões de procedimentos no Brasil. Por isso, Barroso atenta que o país não pode cair em um monopólio privado de produção. “Precisamos aumentar o número de players para estimular a concorrência. Algumas empresas já estão começando a atender nosso chamado, mas ainda com preços elevados e quantidades insuficientes”, observa o médico.
Radiofármacos são alvo do mercado internacional
O mercado mundial de medicina nuclear é estimado em mais de nove bilhões de dólares e deve alcançar quase 25 bilhões em 2030, segundo a Spherical Insights & Consulting. Globalmente o setor já se tornou estratégico para o desenvolvimento de medicamentos e está em expansão. Em relação aos radiofármacos, um relatório da Future Market Insights de 2024 aponta que a indústria está em grande crescimento, impulsionada por investimentos substanciais e importantes avanços científicos na oncologia. Até o final do ano, estima-se que o segmento atinja quase sete milhões de dólares e 11,6 milhões até 2034. De acordo com o relatório, devido a alta prevalência de doenças cardiovasculares e câncer, a América do Norte lidera o setor, seguida pelo Reino Unido.
A área tem, de fato, chamado a atenção. A farmacêutica americana Novartis anunciou recentemente um investimento de mais de 200 milhões de dólares na construção de uma nova unidade de fabricação de radiofármacos. A empresa também tem planos para abrir novas unidades de fabricação na China e no Japão. Em março deste ano a AstraZeneca anunciou um acordo para comprar a empresa canadense de medicina nuclear, Fusion Pharmaceuticals, por até 2,4 bilhões de dólares. Isso permitirá à farmacêutica acesso a um radiofármaco inovador para o tratamento de câncer de próstata.
Outras grandes farmacêuticas também disputam o mercado com a compra de empresas radiofarmacêuticas. Em fevereiro deste ano a Bristol Myers Squibb adquiriu um grande player do setor, a empresa RayzeBio, por 4 bilhões de dólares. Além disso, em 2023 a Eli Lilly comprou a empresa americana em estágio clínico Point Biopharma por 1,4 bilhão de dólares.
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