Principal empresa internacional de tabaco defende que estratégia garante redução de danos. Uso de dispositivos eletrônicos também traz riscos para a saúde, segundo especialistas
Por Mariana Lenharo, do G1
A prevalência de fumantes no Brasil e no mundo vem caindo a cada ano. Segundo um estudo publicado em abril pela revista “Lancet”, a parcela de homens fumantes no país caiu de 29%, em 1990, para 12%, em 2015; entre as mulheres, o índice foi de 19% para 8%. Diante dessa tendência, seria plausível imaginar um futuro sem cigarro, produto que mata ainda hoje mais de 7 milhões de pessoas por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Esse futuro é o que a própria indústria do tabaco está começando a vislumbrar. Ao menos, um futuro sem o cigarro que conhecemos hoje. Reconhecida como a principal empresa internacional de tabaco do mundo, a Philip Morris International (PMI) tem anunciado o planejamento de um futuro “smoke-free”, em que a produção de cigarro seria gradualmente abandonada e substituída por dispositivos eletrônicos para fumar. “A Philip Morris defende um futuro sem fumaça e está fazendo esforços significativos para acelerar a transição do cigarro convencional para outras formas menos nocivas de produtos de tabaco”, afirmou, em entrevista por e-mail, o diretor de assuntos corporativos da Philip Morris Brasil, Fernando Vieira.
O IQOS, um dispositivo da PMI que aquece o tabaco em vez de queimá-lo, já é vendido em 23 países, entre eles Alemanha, Canadá, Colômbia, Portugal, Espanha e Reino Unido (veja o infográfico para entender como funciona). O plano é que chegue até 35 mercados até o fim de 2017. Segundo Vieira, a empresa tem investido para “desenvolver novos produtos potencialmente menos nocivos que possam substituir o cigarro convencional, conhecidos como produtos de risco reduzido”.
Empresa líder no mercado legal de cigarros no Brasil, a Souza Cruz também sugere a possibilidade de incluir cigarros eletrônicos em seu portfólio. Em nota enviada por e-mail, a empresa afirmou que “defende um amplo debate com a sociedade civil sobre a proibição de comercialização dos produtos de próxima geração, incluindo comunidade científica, reguladores, ONGs, consumidores e varejistas, uma vez que estes produtos já são uma realidade no mundo”. Até o momento, a venda, importação e propaganda de qualquer dispositivo eletrônico para fumar são proibidas pela Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa), segundo a Resolução RDC 46/2009.
Risco reduzido?
A indústria do tabaco anuncia os dispositivos eletrônicos como uma alternativa menos nociva ao cigarro tradicional. Mas que evidências científicas existem de que esses produtos realmente impõem um risco menor à saúde?
A médica Stella Regina Martins, especialista em dependência química do Programa de Tratamento ao Tabagismo do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP (Incor), afirma que existe, atualmente, uma divisão mundial entre os especialistas em controle do tabagismo. Um grupo acredita que o cigarro eletrônico poderia ser usado como estratégia de redução de danos. Outro grupo, no qual ela se inclui, é mais cauteloso e defende a manutenção da proibição do produto.
Stella coordenou a elaboração do livro “Cigarro eletrônico: o que sabemos?”, publicado em 2016 pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), para o qual fez uma extensa revisão de estudos já existentes. “Até o momento, não há evidência científica consistente de que o cigarro eletrônico seja uma alternativa mais segura para quem não quer parar de fumar ou de que o produto vá ajudar as pessoas que querem deixar o cigarro”, conclui a especialista.
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Uma vantagem dos dispositivos eletrônicos, segundo Stella, é que, por não envolver combustão, ele não produz o monóxido de carbono, fator de risco para infarto. Além disso, alguns compostos tóxicos aparecem em quantidades reduzidas em relação ao cigarro tradicional. “Por outro lado, outras tantas substâncias que não existem no cigarro tradicional aprecem no cigarro eletrônico”, afirma.
Para ela, diante do atual cenário de queda de fumantes no país e da disponibilidade de tratamentos consolidados contra o tabagismo disponíveis inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS), não faria sentido introduzir um novo produto de tabaco no país, com potencial para atrair novos consumidores.
Estudo pioneiro no Brasil
Esta também é a opinião da médica Jaqueline Scholz, coordenadora da área de cardiologia do Programa de Tratamento ao Tabagismo do Incor. Ela está desenvolvendo um dos primeiros estudos brasileiros com pacientes para avaliar o impacto do cigarro eletrônico na saúde. Apesar de o trabalho ainda estar no início, a avaliação dos primeiros voluntários já revelou que os usuários de cigarro eletrônico continuam consumindo quantidades de nicotina semelhantes às que consumiam quando usavam o cigarro tradicional: só substituem uma forma pela outra.
Pessoas que fumavam, por exemplo, 10 cigarros por dia, passaram a consumir cerca de 10 ml da substância que contém nicotina usada como refil dos cigarros eletrônicos. Quando se faz o exame de ponta de dedo, a quantidade de nicotina encontrada nos usuários das duas formas de cigarro é semelhante.
O estudo coordenado por Jaqueline está focando no impacto do dispositivo na saúde bucal. Estudos anteriores afirmam que uma temperatura a partir de 60 graus já é suficiente para provocar lesões celulares na boca. O cigarro eletrônico, apesar de atingir uma temperatura menor do que o do cigarro tradicional, pode chegar a até 350 graus.
Foto: AP Photo/Nam Y. Huh, File