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'Doença da pobreza': o que é a tuberculose latente, que afeta 1 em 4 pessoas?

A tuberculose é uma doença que tem cura e pode ser prevenida. Mas, em 2019, ela matou pelo menos 1,4 milhão de pessoas no mundo e deixou cerca de 10 milhões doentes, incluindo mais de 1 milhão de crianças e adolescentes, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por BBC News Brasil

Um dos desafios no combate à tuberculose é que as bactérias que a causam estão presentes em cerca de um quarto da população mundial, segundo a OMS.

E, a partir desse estado latente, a infecção pode se tornar ativa quando outros fatores, como pobreza e desnutrição, tornam-se mais agudos.

“A tuberculose é uma doença da pobreza”, destaca a OMS em seu mais recente relatório global sobre o assunto.

Tanto a pobreza quanto o acesso aos serviços de saúde foram profundamente afetados em muitos países pela pandemia de covid-19.

“Doze meses de covid-19 eliminaram 12 anos de progresso na luta global contra a tuberculose”, disse esta semana o End TB Partnership, um consórcio global para impedir o avanço da doença.

O grupo disse que, em um grupo de apenas 23 países, o número de pessoas que receberam diagnóstico e foram tratadas para tuberculose caiu pelo menos 1 milhão em 2020 em comparação com 2019.

A tendência também é percebida no Brasil. Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, divulgado na quarta-feira (24-03), o país teve queda de 9,5% em casos registrados da doença: 66.819 novos casos em 2020 (31,6 para cada 100 mil habitantes), contra 73.864 casos novos em 2019 (35 casos por 100 mil habitantes).

Para especialistas, essa aparente queda preocupa porque pode refletir uma baixa no número de diagnósticos em meio à pandemia do coronavírus, e não uma queda no número de pessoas infectadas.

Assim, mais brasileiros podem estar transmitindo a doença sem tratamento.

De acordo com dados da Índia e da África do Sul, as pessoas infectadas simultaneamente com tuberculose e covid-19 têm um risco de mortalidade três vezes maior do que pacientes que só têm tuberculose.

A ameaça da tuberculose latente
A tuberculose é causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis, que quase sempre afeta os pulmões, mas pode afetar outras partes do corpo.

A OMS explica que a infecção é transmitida de pessoa para pessoa pelo ar. Quando alguém com tuberculose pulmonar tosse, espirra ou cospe, ela expele bacilos para o ar. E basta uma pessoa inalar alguns desses bacilos para se infectar.Cerca de 25% das pessoas no planeta estão infectadas com o bacilo da tuberculose, segundo a OMS. A tuberculose latente pode ser detectada com um exame de pele ou sangue.

Para a maioria das pessoas que respiram a bactéria da tuberculose e ficam infectadas, seus corpos podem lutar contra as bactérias e impedir que se multipliquem.

Embora não apresentem sintomas de doença ou transmitam a infecção, essas pessoas têm um risco ao longo da vida de adoecer com tuberculose entre 5% e 15%.

Pessoas imunossuprimidas, por exemplo, as que vivem com HIV ou sofrem de desnutrição ou diabetes, bem como usuários de tabaco, correm um risco “muito maior” de adoecer, de acordo com a OMS.

“A tuberculose latente significa aquela pessoa que num determinado momento se infectou, mas as defesas do seu corpo a protegeram, tem a tuberculose dentro do corpo e, graças às suas defesas, não desenvolve a doença; é como se a tuberculose estivesse dormindo ou hibernando”, explica Leonid Lecca, diretor no Peru da Socios En Salud, uma ONG com sede nos Estados Unidos, e instrutor do Departamento de Saúde Global e Medicina Social da Universidade de Harvard.

“O problema é que se esse grupo de pessoas não estiver protegido, em algum momento da vida, quando suas defesas forem reduzidas (por exemplo, devido à má nutrição), o germe pode ‘acordar’ e causar a tuberculose.”

“É por isso que há duas mensagens aqui: combater os determinantes sociais (pobreza, desnutrição) e proteger as pessoas em risco de tuberculose (com terapia preventiva contra a tuberculose).”

No caso da Argentina “estima-se que 30% da população tenha uma infecção latente e que, nos imunocompetentes, a possibilidade dessa infecção se transformar em doença é de 10%”, explica Marcela Natiello, coordenadora do programa contra tuberculose e hanseníase do Ministério da Saúde do país.

A especialista argentino destacou que correm o maior risco as pessoas que por alguma causa fisiológica ou adquirida tenham alteração do sistema imunológico (gestantes, crianças, desnutridas, com tratamento imunossupressor, HIV, etc.).

“A tuberculose latente pode ser tratada em algumas situações para evitar que se transforme em doença”, diz ela.

“Em nosso país, a maior fonte de contágio se deve à exposição a casos contagiosos, sendo necessário que os pacientes possam terminar o tratamento e fazer um controle adequado dos contatos.”

Até 13 milhões de pessoas nos Estados Unidos podem ter uma infecção latente de tuberculose, de acordo com o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

A mesma agência indica que mais de 80% das pessoas que adoecem com tuberculose nos Estados Unidos tiveram uma infecção tuberculosa latente que não foi tratada.

Evitável, mas letal
O CDC diz que as pessoas com infecção latente de tuberculose devem ser tratadas para evitar que desenvolvam a doença.

O tratamento preventivo varia de acordo com o país, e os padrões de terapia preventiva foram atualizados pela OMS em 2020, explica Lecca.

“Por exemplo, um tratamento muito bom seria três meses de isoniazida mais (o antibiótico) rifapentina semanalmente durante três meses, mas infelizmente a rifapentina é acessível a poucos países. O Peru, por exemplo, não tem acesso a esse medicamento e usa um regime de isoniazida apenas por seis meses diariamente.”

Depois que as pessoas desenvolvem a doença, a taxa de mortalidade pode ser alta.

A OMS destaca que sem tratamento adequado, em média 45% das pessoas soronegativas com tuberculose e praticamente todas as pessoas soropositivas com tuberculose morrerão.

Cerca de 85% das pessoas que desenvolvem tuberculose podem ser tratadas com sucesso com medicamentos como a rifampicina, administrados por um período de seis meses.

Embora demore alguns meses para se curar, uma pessoa com tuberculose deixa de ser contagiosa em média 15 dias após o início do tratamento.

Mas o aumento global da tuberculose resistente é uma grande ameaça à saúde pública e requer um tratamento mais caro e prolongado.

Globalmente, cerca de meio milhão de pessoas desenvolveram tuberculose resistente à rifampicina em 2019, das quais mais de 70% tinham tuberculose multirresistente, de acordo com a OMS.

Tuberculose no continente americano
A maioria dos casos de tuberculose em 2019 ocorreu no sudeste da Ásia e na África. O continente americano representou 2,9% do total.

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o braço da OMS nas Américas, estimou 289 mil casos de tuberculose em 2019 nas Américas, dos quais cerca de 15 mil eram pessoas com menos de 15 anos.

A OPAS estima que a tuberculose matou 22,9 mil pessoas na região em 2019, das quais 26% estavam infectadas com HIV.

“A região das Américas tem um grupo dos chamados países de alta carga que são liderados por Brasil, Peru, México, Colômbia e Haiti, com 69% dos casos de tuberculose para 2019”, diz Rafael López Olarte, especialista da OPAS para prevenção, controle e eliminação da tuberculose.

“Em relação à tuberculose resistente a medicamentos, Peru e Brasil respondem por 52% de todos os casos no continente.”

Embora a incidência de tuberculose em todo o mundo tenha diminuído, entre 2017 e 2018, o número de casos nas Américas aumentou 2,5%.

Em sete países da região, foi observado um aumento na taxa de incidência relatada entre 2014 e 2018, de 82% na Venezuela, 58% em El Salvador, 6% no Brasil e México e 5% na Argentina.

O aumento da incidência na região se deve, por um lado, à utilização de métodos diagnósticos mais sensíveis.

Mas a OPAS afirma que também se deveu à “persistente deterioração das condições socioeconômicas e à fragmentação dos sistemas de saúde”, entre outras causas.

O impacto da pandemia
Pouco mais de um ano após o início da pandemia, seu impacto é muito pior do que o projetado, de acordo com a Stop TB Partnership.

Nove países, responsáveis ​​por 60% dos casos globais, viram uma redução drástica, de até 41%, no diagnóstico e tratamento de infecções por tuberculose em 2020. São eles: Bangladesh, Índia, Indonésia, Mianmar, Paquistão, Filipinas, África do Sul, Tajiquistão e Ucrânia.

A queda significa um retorno a níveis não vistos nesses países desde 2008, um retrocesso de 12 anos.

“Doze anos de progresso impressionante foram tragicamente revertidos por outra infecção respiratória”, diz Lucica Ditiu, presidente da End TB Partnership. “Nesse processo, colocamos a vida de milhões de pessoas em perigo.”

No continente americano, o impacto da pandemia foi sentido na queda na oferta de serviços de detecção, tratamento e monitoramento de pacientes com tuberculose, diz Olarte.

“O diagnóstico e a notificação de novos casos diminuíram cerca de 15-20% em média na região em relação a 2019 segundo dados preliminares, que indicam casos não diagnosticados pelos serviços de saúde e a continuidade na transmissão”, disse o especialista da OPAS.

“A transmissão intradomiciliar de pessoas ainda não diagnosticadas, dada a situação de confinamento, é preocupante.”

O caso do peru
O Peru é o segundo país do continente americano com maior incidência de tuberculose depois do Haiti, em número de novos casos por ano a cada 100 mil habitantes.

“É preciso entender que a tuberculose, além de ser um problema médico, é um problema social. Isso significa que requer um enfoque multissetorial, e esse é o grande desafio para sua resposta em todos os países, inclusive no Peru”, diz Lecca.

“Uma família com alguém afetado pela tuberculose não só enfrenta a doença, mas também geralmente a pobreza, as condições insalubres, a superlotação, o estigma e a discriminação.”

No Peru, a doença está concentrada principalmente nas áreas urbanas e periferias dos bairros mais pobres e marginais, “onde coexistem pobreza, superlotação e má nutrição”, acrescenta o especialista peruano.

O país também enfrenta o grande desafio com a tuberculose resistente. “O Peru infelizmente ocupa o primeiro lugar nas Américas em casos de tuberculose resistente. É um problema muito sério porque requer medicamentos melhores e mais caros, além de apoio integral aos pacientes, já que são tratamentos que duram muitos meses.”

O tratamento integral não inclui apenas os comprimidos, mas também o apoio emocional e socioeconômico aos pacientes para que não abandonem o regime de cuidados.

“Infelizmente, no Peru, atualmente apenas cinco ou seis em cada dez casos de tuberculose multirresistente (TB MDR) são curados, e 2 a 3 abandonam o tratamento.”

A Socios en Salud está no Peru há 25 anos e tratou mais de 12 mil casos de tuberculose multirresistente em parceria com o Ministério da Saúde.

Novos testes e inteligência artificial
Um dos avanços no Peru foi a incorporação de um método de diagnóstico molecular mais sensível, denominado GeneXpert, embora apenas em alguns lugares.

Outro aspecto crucial, segundo Lecca, é a busca ativa da tuberculose, ou seja, ir às comunidades para identificar possíveis casos.

“É uma estratégia com ótimos resultados. Encontramos casos precoces e oportunos na comunidade, incluindo pessoas sem sintomas respiratórios (13% dos casos).”

A equipe identifica locais da comunidade onde sempre houve casos de tuberculose, explica o especialista, oferece radiografia de tórax gratuita para toda a comunidade (e não apenas para quem tem sintomas respiratórios) e usa software de leitura automatizada baseado em inteligência artificial para analisar o raio-x.

“Isso evita o erro humano e, muitas vezes, também a falta de pessoal de saúde treinado para ler os raios-X.”Casos com radiografia anormal passam por um segundo teste, o teste molecular GeneXpert.

O caso da Argentina
A tuberculose na Argentina continua sendo um importante problema de saúde pública e com tendência de aumento nos últimos anos, segundo Natiello.

“Desde 2013, a queda dos casos parou e, a partir de 2014, a curva se inverteu, com um aumento aproximado de 20% nos últimos cinco anos.”

“Este aumento coincide com o aumento da pobreza em nosso país e a deterioração das condições de vida.”

A tuberculose na Argentina atinge principalmente grupos de jovens, com significativa concentração nos grandes centros urbanos, disse a especialista.

“60% dos casos residem na região metropolitana de Buenos Aires. Em grande parte, o padrão epidemiológico responde aos problemas das grandes cidades, afetando principalmente populações que vivem em situação de vulnerabilidade, aglomeradas, em ambientes sem ventilação, mal nutridas e com dificuldades de acesso à saúde devido a diferentes tipos de barreiras (fragmentação do sistema de saúde, cultural, econômica, trabalhista, etc.).”

Outros grupos altamente afetados pela doença são pessoas privadas de liberdade, imigrantes e populações indígenas, principalmente no norte do país.

Em relação ao impacto da pandemia, “constatou-se que um em cada três casos com tuberculose ativa e covid-19 requer hospitalização, e o risco de morrer é 3,6 vezes maior neste grupo do que na população em geral.”

Houve aproximadamente 30% menos notificações preliminares de novos casos em 2020 na Argentina do que em 2019, de acordo com Natiello.

‘Pode afetar a todos nós’
A estratégia da ONU para o fim da tuberculose visa reduzir as mortes por infecção em 95% e reduzir os novos casos em 90% entre 2015 e 2035.

Mas essa é uma meta distante, já que milhões de pessoas em todo o mundo ainda não têm acesso a um diagnóstico ou tratamento rápido.

Natiello recorda que “a tuberculose é uma doença evitável, tratável e curável com seis meses de tratamento na maioria dos casos”.

“Se tivermos contato repetido com uma pessoa doente, podemos desenvolver a doença até meses ou anos após a exposição.”

“Qualquer pessoa que tiver tosse e expectoração com ou sem eliminação de sangue por 15 dias pode fazer um estudo de resfriado para descartar a doença.”

“Por décadas, a tuberculose tem sido uma doença negligenciada, então, ao contrário de outros problemas de saúde, não temos boas ferramentas de diagnóstico ou muitos novos medicamentos”, diz Lecca.

“A infecção é muito semelhante à covid-19, e não estamos fazendo muita coisa para controlá-la. Precisamos nos conscientizar de que a tuberculose é uma doença que pode afetar a todos nós”.

Foto: WILLIAM CASTRO | SOCIOS EN SALUD

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