Presidente do conselho questiona abertura indiscriminada de cursos de medicina e alerta: “Médico não tem o direito de errar. Por isso é necessária formação de qualidade”
Aos moldes da prova que é aplicada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) resolveu avaliar a qualidade dos recém-formados que pleiteiam inscrição no Estado. Os resultados têm sido assustadores: 55% de reprovação.
Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção Online, o presidente do Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego) elencou os motivos pelo baixo desempenho dos futuros médicos e avaliou os cursos de medicina oferecidos em Goiás. Segundo dr. Erso Guimarães, faltam investimentos do governo federal e maior rigor na autorização da criação dos cursos de medicina.
Embora reconheça que a prova não influencia na competência dos recém-formados, ele acredita que seria uma maneira de tentar fazer com que as faculdades identifiquem as deficiências e melhorem a qualidade do ensino, uma vez que os resultados são divulgados.
Os estudantes de medicina de Goiás devem se preparar, pois o presidente do Cremego confirmou que a tendência é que o exame seja implantado no Estado. E logo.
Leia a entrevista na íntegra:
As escolas de medicina de Goiás estão preparadas para formar profissionais competentes?
É complicado. Goiás não é diferente do resto do País. É um dos Estados que mais demorou a ter autorização para novas escolas de medicina. Outros, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, abriram escolas indiscriminadamente. Inclusive, o Tocantins também. Goiás foi um dos últimos a ter “a porteira aberta”.
Como são concedidas as autorizações para se abrir uma faculdade de medicina? Qual o rigor do Ministério da Educação?
São normativas do MEC que definem a estrutura mínima para se abrir uma. Tem que ter uma pontuação mínima para se liberar a abertura, ou mesmo o aumento de vagas nos cursos já existentes.
Mas é importante ressaltar que o MEC só concede licença para escolas particulares. As públicas, estaduais ou municipais, são liberadas sem autorização do MEC. São liberadas com autorização do Conselho Estadual de Educação.
Um exemplo é a faculdade de Rio Verde, uma escola pública municipal autorizada diretamente pelo conselho e não pelo MEC.
Mas, dessa forma, a abertura dessas faculdades não vira uma questão política?
Nós questionamos à época a liberação da Faculdade de Rio Verde junto ao Ministério Público, mas, depois de apurados os fatos, chegou-se à conclusão de que estaria legal.
Que tipos de profissionais saem dessas faculdades, então?
Os Conselhos de Medicina não têm poder decisório ou opinativo sobre a criação dos cursos de medicina, nem sobre a grade curricular desses cursos. Nós temos um representante no Ministério da Saúde, por meio do Conselho Nacional de Saúde, mas é um representante entre as 14 outras profissões em saúde. Temos um poder mínimo.
Infelizmente, os cursos de medicina não estão sob o controle ou fiscalização dos conselhos.
Agora, quem sabe melhor qual a estrutura “mínima” que deve ser exigida para se propor a criação ou ampliação de cursos de medicina não é o MEC. São os profissionais da medicina. Nós é que temos o conhecimento para tanto. Acredito que deveria ser uma parceria entre o MEC e o Ministério da Saúde.
O que fazem os conselhos?
Recebem e fiscalizam os médicos. Não opinamos sobre a formação dos mesmos.
Quantas são as escolas de medicina de Goiás?
Oficializadas e em funcionamento: duas unidades da Universidade Federal de Goiás, uma em Goiânia e uma em Jataí; uma unidade da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), em Goiânia; duas unidades da Universidade de Rio Verde (Unirv), uma em Rio Verde e a outra em Aparecida de Goiânia.
E a Faculdade Sul-Americana (Fasam)?
O Cremego questionou a mesma junto ao MEC, pois ela teve autorização negada, reprovada, mas através de medida liminar — que é um mandato de segurança —, conseguiu a abertura da faculdade.
Quer dizer, tirando até de quem tem constitucionalmente o direito de autorizar a abertura ou não de uma faculdade. A Justiça ignorou a decisão do MEC. Quer dizer que em Goiás nós temos faculdades autorizadas pelo MEC, pelo Conselho Estadual de Educação e via judicial. Isso nos preocupa muito.
A PUC-Goiás também teve, recentemente, o curso de medicina reprovado pelo MEC.
A PUC tentou abrir escola de medicina há mais de 15 anos. Quando eu fui presidente pela primeira vez, em 2001, a universidade tentou abrir o curso, mas nós não recomendamos a abertura, pois não havia condições.
Só conseguiram cinco anos depois, após se adequaram àquilo que propusemos. A universidade não chegou e abriu de imediato o curso, houve um processo de adequação. Agora, imagina uma faculdade que começou um dia desses, sem gabarito, sem condições.
Quem são os profissionais que ministram aulas nessas escolas que o sr. diz serem “sem gabarito”, “sem condições”?
Para ser médico ou ministrar aula de medicina tem que estar inscrito no conselho. Então, eles estão. Agora, não tem como o conselho proibir que um profissional dê aula em uma faculdade dessas. Não é nossa competência.
Aos moldes do exame da Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo, já há o exame que avalia os médicos recém-formados. Os índices de reprovação dos paulistas são assustadores, chegando a 55% dos formados. Como o conselho entende tal fato?
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) criou o exame exatamente para avaliar o profissional de medicina que está sendo formado no Brasil. Na verdade, ele não só avalia os médicos recém-formados de São Paulo, mas, sim, os que querem se inscrever na regional paulista — mesmo tendo se formado em outros estados brasileiros. Naturalmente, a maioria dos que se inscrevem são formados lá.
No entanto, vale destacar que não é obrigatório ser aprovado para exercer a profissão. A prova é obrigatória para quem quiser se inscrever no conselho, mas não é obrigatório ter passado de fato para exercer a medicina.
A tendência é que esta prova seja estendida para todo o País. O Conselho Federal de Medicina é contra, mas temos alguns conselhos que já estão se preparando para se realizar a prova. Já discutimos isso em Goiás e devemos nos próximos meses decidir se traremos para cá. Se não me engano, mais dois conselhos já acertaram e farão os exames a partir deste ano.
Como presidente, como o sr. se posiciona?
Eu trouxe este assunto para plenária e a tendência é que seja feita a prova também em Goiás. Para quê? Para aferir a qualidade do profissional que está sendo formado e para poder pelo menos tentar influenciar na qualidade do médico que está sendo formado em Goiás.
Seria uma maneira de tentar fazer com que as faculdades identifiquem as deficiências e melhorem a qualidade do ensino. Não se resolve o problema dos que já saíram, mas dá condições de melhoria para os futuros formandos. A lei não nos permite não fazer a inscrição do médico que tem diploma, pois a prova não é excludente.
Quem tira zero pode fazer a inscrição porque a lei assim determina.
Seria uma solução fazer como a OAB faz? Quem não passa, não pode exercer a profissão?
É uma tendência natural que já está sendo discutida pelos conselhos há mais de dez anos: ter exames de proficiência para liberar o exercício da profissão. Só que este exame de ordem só teria validade se fosse regulamentado por lei.
Isso não evidencia a fragilidade do ensino superior, não só em Goiás, mas em todo o Brasil?
É o que existe na OAB. Faz exame para entrar na faculdade e depois para ser autorizado a exercer a profissão. Existe um item na lei do Mais Médicos que é o teste do progresso: uma avaliação a cada dois anos dos alunos de todos os cursos para verificar a qualidade deste profissional. Vai ser feito e já está na lei. Só que este será feito pela instuição de ensino. Por isso é tão importante ter instituições de ensino confiáveis.
O exame do Cremesp, que provavelmente será estendido — é só uma questão de tempo —, é um exame externo. Que avalia a qualidade do profissional e indiretamente avalia a qualidade do órgão formador.
O caso da PUC-Goiás, por exemplo, que obteve nota 2 no Conceito Preliminar de Curso (CPC), sendo assim reprovada pelo MEC, surpreendeu o Cremego. Como lidar com tal fato? Uma universidade grande, de renome, sendo reprovada por não possuir estrutura básica mínima?
É extremamente preocupante. A medicina é uma atividade de muita responsabilidade. O erro do médico leva a danos irreversíveis. Médico não tem o direito de errar. E, para não errar, tem que ser um profissional de qualidade. E para tanto, é necessário que haja uma formação de qualidade. Sendo assim, não dá para liberar licenças para cursos de produção de massa de médicos sem qualidade profissional. É uma irresponsabilidade da classe política e dos órgãos competentes liberar profissionais sem condição de oferecer atendimento de qualidade aos cidadãos.
Qualidade de ensino é muito mais importante que quantidade de médicos.
Por outro lado, temos a deficiência de médicos no Brasil hoje…
Não existe deficiência de médicos no Brasil. Pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a quantidade de médicos está mais que suficiente para atender a demanda de saúde do País.
Em Goiás também é assim?
A proporção é até maior do que a maioria dos outros Estados. Goiás tem muitos médicos porque forma muitos profissionais.
Então, qual o problema?
O problema é que existe estrutura de saúde inadequada, que não comporta os médicos ou a quantidade de médicos necessárias. A maioria dos médicos prefere atender na rede privada e a impressão é que não tem médico para a rede pública. Pague direito, dê condição de trabalho, que não vai faltar médico.
O atual governo quer aumentar o número de profissionais de nível superior. Então, em todas as áreas, não só na área da saúde, o governo federal aumentou o número de escolas. Criou cursos sequências, de pequena duração, para dar diploma de nível superior para quem não tinha.
Só aumentam o número de vagas e instituições, mas não se preocupam com a qualidade em nenhuma das áreas. Pergunte para profissionais de direito se há melhora no ensino. Não está havendo investimento na qualidade. Há investimento em números. Quer colocar mais gente em uma estrutura que já é precária. É uma irresponsabilidade com a nação!
Para se ter ideia hoje existe curso superior 100% não-presencial. Não tem justificativa.
Qual seria a saída?
Investir nas universidades. O governo federal deixou de investir R$ 12 bilhões em verbas orçadas. Orçadas e que estavam disponíveis para a saúde e o governo deixou de aplicar.
Deixou de construir hospitais e de comprar equipamento tendo dinheiro reservado. Para quê? Ou é incompetência gerencial, ou é objetivando sobrar dinheiro para dizer que tenha superávit. Essa é a questão.
Por nós, dos conselhos, poderia haver uma faculdade em cada esquina. Sendo de qualidade. Não há problema.
Os conselhos e médicos brasileiros são acusados de reserva de mercado. Quando o Mais Médicos foi lançado, inclusive, essa era uma das justificativas do governo. Hoje, eles comemoram os resultados do programa e vão lançar a segunda edição. Como o conselho vê a questão?
Na verdade, eles já abriram vagas para o Mais Médicos 2. O que aconteceu? Pela lei do projeto, tem que abrir vagas para brasileiros primeiro, deu mais de 10 mil inscritos para menos de 4 mil vagas. Na primeira vez que abriram, os brasileiros não conseguiram se inscrever e aí chamaram os estrangeiros.
Como está o mercado da medicina em Goiás?
Não existe médico desempregado em Goiás. O problema da “sensação” de que se falta médico é que a classe trabalha demais e dificilmente tem só um vínculo empregatício, ele tem dois, três e até quatro. Se pagasse bem o profissional, não haveria isso e, consequentemente, abriria mais vagas para outros trabalharem. Temos carência de médicos no sistema público, mas porque o sistema público não oferece condições.
Goiânia, por exemplo, faltam médicos. Se houvesse uma estrutura boa, pagasse melhor, faltaria? Não! Teria uma fila de médicos para ir para os Cais. O que acontece é que são realizados os concursos, o médico é contratado, mas na hora que vai trabalhar já vai contrariado por estar ganhando pouco e ainda é colocado em um ambiente adverso? Pede-se um remédio não tem, pede-se um exame simples, não faz, você tem que assumir uma hipótese diagnóstica sem uma comprovação básica.
Isso é muito sério. O médico tem que assumir um risco porque o paciente está ali, doente, e não pode esperar. Aí acontece um diagnóstico equivocado e de quem é a responsabilidade? É da secretaria de Saúde? Da prefeitura? Não. É do médico. Dizem que os médicos são “exigentes” demais. Mas não é… A pessoa chega com uma reação alérgica, precisa de uma ampola que custa R$ 2, mas não tem. Está certo isso?
Por vezes, o médico é considerado “exigente demais”. Como o sr. vê isso?
A gente orienta: se não tem condição de trabalho, não trabalhe, porque é colocar a vida das pessoas em risco. Não é ser exigente demais… É, na verdade, ter o mínimo de condição de trabalho. Mas aí, se o médico não vai trabalhar, a culpa é do médico.
Há, ainda, uma situação mais precária no interior. Em Goiânia, não se contrata médico sem concurso público — ou não se contratava, pelo menos. Já no interior, prefeitos fazem contratos temporários, que não dão nenhuma estabilidade ao médico. Por exemplo, nesses contratos, não são pagos 13º salário, férias, mas somente os dias trabalhados. E mais: estão querendo que médicos constituam pessoa jurídica. O município deixa de recolher as obrigações e o médico/empresa passa a ter mais obrigações. Você acha que o médico vai querer ficar nesses lugares?
E o Mais Médicos?
Foi um programa criado para levar médicos a locais onde não existiam médicos. A maioria deles estão onde? Nas grandes cidades! Nas periferias das grandes cidades. Em Goiás… Onde tem mais médicos?
No Entorno do DF?
Não! Em Goiânia e Aparecida de Goiânia. Algumas cidades do Entorno, sim, mas a maioria deles estão próximos às grandes capitais. Em São Paulo, a maioria está no ABC Paulista. Falta médico em São Paulo? Não falta. Cadê os médicos que precisam para onde não havia? As cidades continuam sem. Nesta chamada agora que estão colocando para as cidades mais distantes.
Para se ter ideia, dos primeiros 60 médicos do programa, mais de 40 foram para Goiânia ou Aparecida.
Então, a questão é mais séria. É preciso que o governo se comprometa com a formação do profissional, invista na condição de trabalho, depois disso pensar em melhora salarial e benefícios. Eu garanto, se houver condição de trabalho, o médico aceita trabalhar ganhando pouco. Agora, colocar o profissional para trabalhar em um ambiente que gera extremo estresse, que o responsabiliza por tudo e ainda não paga. Ninguém aguenta.
É preciso dar mais “poder” aos conselhos?
Existem projetos de leis que estão no Congresso há muitos anos, engavetados, de deputados que abraçam a causa médica. Mas o governo federal não quer isso… Ele que enfraquecer as instituições. O Conselho de Medicina, a partir do momento, que ele puder opinar definitivamente na qualidade do ensino e do profissional que vai trabalhar na área, ganha autoridade. E não é isso que o governo quer. Governo quer fechar conselhos e criar agências reguladoras. Esse proposta estava, inclusive, no projeto Mais Médicos, mas foi retirada.
Reafirmo, aumentar o número de profissionais, colocando os de baixa qualidade competindo com os que tem qualidade, não vai dar certo para a população. Os que vão ser contratados são os de péssima qualidade, pois são “mais baratos”. Esta é nossa preocupação… Sempre foi. É a preocupação de Países desenvolvidos, como Estados Unidos e Inglaterra, onde ter o diploma não é suficiente. Tem que demonstrar qualidade, tem avalição periódica, tem que provar competência. Aqui não. Basta ter o diploma… Muitas vezes duvidosos.
Uma vez que morre um paciente nas mãos de um médico que não foi formado de maneira adequada, é irreparável. Não há como recuperar uma vida.
Fonte: http://www.jornalopcao.com.br/
Foto: Scott Akerman, voa Flickr