Estimativas apontam que 139 milhões de pessoas devem desenvolver doença de Alzheimer em 2050, o que demanda atenção de países e da sociedade
Por Futuro da Saúde
Com uma sociedade vivendo cada vez mais, é natural que patologias comuns da idade avançada se tornem mais presentes. Com a doença de Alzheimer não é diferente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as projeções mostram que o número de pessoas com mais de 60 anos chegará a dois bilhões até 2050. E países e sociedade precisam se preparar para isso.
Dois movimentos ocorrem em paralelo para lidar com a questão. Um deles é a busca incessante da indústria farmacêutica que, há décadas, investe em pesquisa e desenvolvimento em busca por estratégias que consigam melhorar, ou pelo menos frear o declínio cognitivo. Nessa vertente, nos últimos meses, foi possível ver os primeiros resultados com fármacos que parecem ser promissores, conseguindo prolongar períodos de lucidez e independência do paciente.
O outro movimento reside em dar um passo atrás, olhando para a pessoa e para os hábitos dela antes do possível desenvolvimento ou do avanço da doença. Aprender um novo idioma, tocar um instrumento ou fazer atividades físicas são ações vistas como parte de um cenário de prevenção. “Manejos não farmacológicos fazem como se fosse uma prevenção terciária. Por meio dessas medidas, se feitas muito mais cedo, seria possível evitar o desenvolvimento ou retardar o começo da doença. Já com a doença instalada, tentam modificar o curso. Mesmo que não reverta o quadro, a pessoa pode ter melhor qualidade de vida”, explica Marco Tulio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
Cenário no Brasil e no mundo
Números da OMS alertam para uma tendência de alta da doença. Hoje, 55 milhões de pessoas têm algum tipo de demência e o Alzheimer é a forma mais comum entre elas, atingindo cerca de 7 a cada 10 pessoas com demência no mundo.
As expectativas são de uma alta constante e progressiva nas próximas décadas: segundo a Alzheimer’s Disease International, os números globais vão atingir 78 milhões em 2030 e 139 milhões em 2050 – países em desenvolvimento tendem a ter mais pessoas com a doença.
A previsão de uma expectativa de vida cada vez mais alta colabora com os números. No Brasil, números do Ministério da Saúde estimam que 1,2 milhões de pessoas têm a doença de Alzheimer – com uma alta prevista de 100 mil novos casos diagnosticados por ano.
A incapacidade gerada pela perda da função cognitiva é fator essencial nos custos gerados pela demência. Em 2019, eles giraram em torno de US$ 1,3 trilhão. Até 2030, o valor projetado e corrigido chega a US$ 2,8 trilhões.
“O foco hoje parte em reconhecer melhor a doença e talvez abrir o leque para suas variações. Isso vai nos permitir tratar corretamente e melhor os pacientes em um futuro não tão distante”, destaca Diogo Haddad, neurologista do Hospital 9 de Julho.
A doença
O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva, comumente associada a perda da memória recente e de fisiopatologia complexa. Além disso, seu diagnóstico não é tão claro quanto aparenta – muitas vezes o “esquecimento” dos idosos é subestimado pela família, o que atrasa o diagnóstico e colabora para a aceleração da doença.
“As pessoas têm dificuldades de recordar fatos e eventos recentes. Ela não sabe, por exemplo, que no dia anterior foi ao banco, teve uma festa, recebeu uma visita importante”, explica Marco Tulio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
A origem da doença de Alzheimer não é exatamente conhecida – ela pode ter traços genéticos, se tornando hereditária, e também surgir a partir da influência de fatores externos, como hábitos de vida. Tabagismo, sedentarismo, hipertensão, diabetes e até mesmo a baixa escolaridade podem favorecer a predisposição ao desenvolvimento da doença.
Em boa parte dos pacientes, a perda de memória acontece associada a perda de funções cognitivas e incapacidade de realizar tarefas diárias – como tomar os próprios remédios ou ter controle da sua vida financeira.
Progressão da doença de Alzheimer
Haddad alerta que existem outras síndromes demenciais que podem ser erroneamente classificadas como doença de Alzheimer: “Os sintomas [do Alzheimer] podem muitas vezes não se associar apenas a memória, mas também a execução, comportamento, linguagem, entre outros. A avaliação com um profissional especialista faz toda a diferença para o tratamento organizado”.
A evolução desta doença acontece de forma lenta e, geralmente, passa por quatro estágios: inicial, moderado, grave e terminal. No inicial, os primeiros sinais estão na alteração da memória e personalidade – as habilidades visuais e espaciais também são prejudicadas.
No moderado, a fala fica comprometida e o paciente não consegue mais realizar tarefas simples. Já no terceiro, o grave, o paciente já não consegue mais engolir, apresenta incontinência urinária e uma deficiência motora progressiva. No último estágio, de forma geral, o paciente fica restrito ao leito, já sem falar, dependendo de fralda e alimentação por sonda, com infecções recorrentes.
Importância do cuidar
É deste lado que atuam organizações como o Não Me Esqueças, uma ONG de Londrina, no interior do Paraná, que tem como missão a defesa dos direitos e da qualidade de vida das pessoas com Alzheimer, seus familiares e cuidadores. Por meio do projeto Capaz, o instituto promove atividades de estimulação cognitiva aos idosos – especialmente aos que estão entre as fases inicial e moderada da doença. O trabalho consiste, principalmente, em desmistificar que o diagnóstico é uma sentença.
“Existe um estigma. A sociedade se acostumou a pensar que o Alzheimer é terrível, mas é uma doença como qualquer outra e o paciente precisa ser cuidado. Temos estratégias para diminuir seu impacto e muitas delas são alterações na qualidade de vida”, explica Mara Solange Gomes Dellaroza, presidente do Não Me Esqueças.
“Idosos com o diagnóstico precisam de orientação para realizar o máximo de atividades que exercitam sua mente e cognição. Eles devem viver em grupos de pessoas das mais variadas idades, não apenas entre idosos. A família precisa estimular, com segurança, novos aprendizados. Quanto mais ativo o paciente for, menos impactos a doença terá no dia a dia”, completa ela.
Dellaroza destaca que a família do paciente também é muito afetada com o passar dos anos e da evolução do Alzheimer. Isso porque, em determinado momento, o idoso vai precisar de assistência e supervisão quase 24 horas por dia. “A família pode e deve procurar instrumentos e entidades que possam ajudar no cuidado”, diz.
No que diz respeito às healthtechs, o Brasil carece de um mercado robusto com foco na doença. Mas, desde 2021, a maya tecsaúde trabalha justamente com o propósito de impactar de forma positiva vida das famílias que cuidam de pacientes idosos. Tudo surgiu quando Júlia Schuwartz, fundadora da startup, experimentou de perto a jornada de cuidar da minha mãe com Alzheimer precoce.
“Percebi, ao longo de cinco anos, que as pessoas que vivem o mesmo que eu ficam perdidas, sem direção e sem solução no cuidado de um paciente idoso”, destaca ela. “Nós fundamos a maya para mudar a realidade do cuidado de um paciente e também das famílias que vivem nessa condição. Sabemos o quanto elas se destroem nessa jornada – se dividem, separam, adoecem. Por isso queremos mudar essa realidade”.
Por meio de um aplicativo, a família pode solicitar atendimento médico, cuidadores e outros profissionais de saúde, como fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas. Também é possível pedir o ‘kit MTC’, que contém todos os medicamentos e produtos utilizados no cuidado do paciente. Ele é entregue semanalmente em casa, gerando economia e conforto para as famílias. Em dois anos, mais de 300 famílias já foram atendidas.
Recentemente, a maya tecsaúde passou pelo primeiro programa de aceleração do governo do Espírito Santo, onde está sediada. A startup é investida pela APEX e pela STARS.
Avanços da ciência
Em relação aos tratamentos, a evolução é significativa, mas chega aos poucos. Até o momento, não existe nada revolucionário, capaz de curar ou até mesmo regredir a doença. As terapias medicamentosas têm se mostrado importantes aliadas para frear o ritmo de progressão do Alzheimer – quanto antes forem iniciadas, mais promissoras tendem a ser nos tratamentos.
“A maior parte dos medicamentos que hoje tem disponível no Brasil, e na maior parte do mundo, são os que agem procurando prolongar o tempo funcional do idoso. No caso de um idoso não medicado, a doença evolui rapidamente. Em cinco anos se torna totalmente dependente”, explica Mara Dellaroza. “Com uma medicação, esse tempo pode chegar até 20 anos. A evolução da doença é muito mais lenta quando entramos com medicação na fase inicial”.
No Brasil, para o Alzheimer, estão disponíveis os medicamentos anticolinesterásico, como a rivastigmina, donepezila e galantamina, que inibem uma enzima que distorce a acetilcolina, um neurotransmissor que está ligado à memória. Para estágios mais moderados, está disponível a memantina, que atua na cadeia de glutamato.
“E, ainda não disponível no Brasil, mas aprovado pelo FDA, nós temos as primeiras drogas contra um dos mecanismos fisiopatológicos, que é a cascata amiloide, que seriam o aducanumabe e o lecanemabe”, explica o presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.
Dentro dos laboratórios
Estes dois medicamentos são da Biogen, empresa de biotecnologia americana sediada em Cambridge. De acordo com Carolina Luque, líder de área médica da Biogen Brasil, após quase duas décadas e pelo menos 100 programas de desenvolvimento sem sucesso, o aducanumabe surgiu como o primeiro tratamento aprovado que endereça uma das etapas críticas da fisiopatologia do Alzheimer.
“Como o primeiro medicamento em sua classe, acreditamos que o aducanumabe ajudará a transformar o tratamento e o cuidado dos pacientes em estágios iniciais da doença”, destaca.
Ele é um anticorpo monoclonal que tem como alvo as formas agregadas da proteína beta-amiloide, incluindo as placas – uma das lesões neuropatológicas mais características da doença. O aducanumabe é administrado por meio de infusões intravenosas. A Biogen tentou submeter o medicamento para registro na Anvisa em fevereiro de 2022, mas o pedido foi negado.
A Biogen também é a responsável pelo lecanemabe, com estrutura semelhante ao aducanemabe, mas que atua nas protofibrilas. Ele também não está disponível no Brasil. A aprovação completa dele nos EUA foi concedida no início de julho pelo FDA. Ele é indicado para pacientes com demência leve, e é tratado pela agência reguladora como seguro e eficaz.
A Eli Lilly também atua no desenvolvimento de inovações contra o Alzheimer: a mais recente descoberta é o donanemab. O medicamento, no entanto, ainda não foi aprovado pela FDA – a submissão aconteceu no segundo trimestre de 2023.
A atuação dele é semelhante ao fármaco da Biogen: o alvo são as placas amiloides que se formam no cérebro. A esperança, de acordo com os estudos clínicos, é de uma redução em torno de 35% do declínio cognitivo dos pacientes em 18 meses.
“Estudos discutem a hipótese de que o acúmulo destas placas está relacionado à neurodegeneração com comprometimento cognitivo e funcional dos pacientes e que, ao eliminá-las, podemos retardar o avanço da doença”, explica André Magno, diretor médico da Eli Lilly.
Futuro do setor
O geriatra Marco Tulio Cintra, da SBGG, acredita que o futuro do Alzheimer deve focar em entender melhor as proteinopatias e, assim, tratar de forma individualizada – cada paciente é único. “Cada demência tem proteínas alteradas que predominam. O paciente pode ter duas proteinopatias de Alzheimer e uma de outra doença, por exemplo. No futuro, talvez, a gente faça um mix de tratamentos conforme a proteína alterada naquela pessoa”, explica.
Ele destaca, no entanto, que um importante ponto é a prevenção primária. Investir em escolaridade, uma infância com estímulos, alimentação adequada e atividade física regular pode fazer com que, no futuro, o cenário da doença mude de forma considerável.
“Quanto à perspectiva de tratamento, não devem sair muitos medicamentos novos nos próximos anos. Mas temos muitos estudos em andamento, bilhões de dólares investidos, várias indústrias. Há um esforço grande em prol disso”, finaliza Cintra.
O neurologista Diogo Haddad acredita no reconhecimento cada vez mais precoce de “grupos de riscos” para Alzheimer. Focar nesse público agora pode ajudar lá na frente: “Entendemos que existam perfis como o do grupo chamado ‘Comprometimento Cognitivo Leve’, onde existem alterações em testes específicos porém a funcionalidade e independência do paciente é completamente preservada, e esses grupos apresentam grande risco para conversão na Demência em si – sendo a principal delas Alzheimer”.
“Isso é importante pois o próximo passo é tentar barrar a doença nessa fase e tudo nos leva a crer que teremos medicações cada vez mais seguras e eficazes nos próximos anos. Outro ponto chave é que estamos cada vez mais reconhecendo novos alvos terapêuticos como neuroinflamação, imunossenescência e acometimento microvascular como potenciais mecanismos de tratamento”, completa Haddad.
Do lado do acolhimento dos pacientes e uma vida mais inclusiva para eles, Mara Dellaroza crê na mudança do pensamento das pessoas. “A gente vê um idoso com comportamento lento e tende a pensar que ele está doente e vai deixar de fazer o que gosta. Não é assim. A sociedade precisa entender que o Alzheimer não é o ponto final da vida, mas o início de uma outra maneira de viver”, finaliza ela.
Foto: Reprodução