A proposta de interrupção voluntária da gravidez até as doze primeiras semanas de gestação, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), motivou divergências durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, nesta terça-feira (5). Para os defensores, as mortes de mulheres em razão de abortos clandestinos e a garantia da mulher de optar sobre se deve ou não reproduzir justificam a liberalização. Além da defesa do direito à vida do feto, os opositores argumentaram que os dados sobre abortos estão sendo inflados para caracterizar um problema de saúde pública e favorecer as mudanças na legislação.
Henrique Batista da Silva, secretário-geral do Conselho Federal de Medicina (CFM), foi um dos que observaram que a ilegalidade do aborto não tem impedido sua prática no país. Segundo ele, os abortos respondem por 11,4% do total de óbitos maternos e as complicações do aborto inseguro representam a terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos. Seriam mais de 200 mil internações anuais no SUS para curetagens pós-aborto.
— O CFM defende a autonomia da vontade da mulher, presente também em situações de terminalidade da vida, entre outras. A proteção ao ser humano deve ser pautar, em princípio, por objetivos morais e éticos — declarou.
Isabela Mantovani, especialista em saúde coletiva, em posição contrária, questionou estimativas de que os abortos ilegais no país se situam entre 1 milhão e 1,5 milhão por ano. Com base em estudo da Universidade de Brasília (UnB) pelo qual uma em cada duas mulheres que abortam precisam de internação, ela afirmou que não mais de 100 mil abortos clandestinos são realizados por ano.
— A estratégia é colocar os números lá em cima, para que o aborto seja legalizado —sustentou, dizendo que o mesmo aconteceu em países onde a prática acabou sendo liberada.
Sugestão popular
A audiência da CDH foi a primeira de uma série programada para orientar a decisão sobre sugestão, vinda da sociedade, (SUG 15/2014) sobre projeto de lei para legalizar o aborto até 12ª segunda semana de gestação, com o suporte do SUS. A proposta chegou ao Senado por meio do Portal e-Cidadania, com apoio de mais de 20 mil pessoas. Para passar a tramitar como projeto, o texto depende da aprovação na comissão.
As audiências foram solicitadas por requerimentos dos senadores Paulo Paim (PT-RS), que preside a comissão, e Magno Malta (PR-ES), relator da matéria, que se revezaram na coordenação desse primeiro debate. Malta garantiu que não vai fechar seu relatório a “toque de caixa”. Disse que vai, inclusive, promover encontros entre defensores e críticos da proposta com demais senadores da comissão, em almoços de trabalho, para que os colegas possam formar melhor juízo sobre o tema.
No Brasil, apenas em três situações o aborto deixa de ser crime e pode ser feito de modo assistido em unidades do sistema público de saúde: em caso de gravidez resultante de estupro, de risco à vida da mãe e quando a gestação for de feto anencéfalo. Em qualquer outra hipótese, a prática do aborto ou sua promoção pode acarretar de um a quatro anos de prisão, nos termos do Código Penal.
Guerra de dados
Ana Maria Costa, presidente do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), lamentou a “guerra de dados” sobre a prática do aborto, com informações lidas a partir dos “valores e moralidade” de cada um. Depois de lembrar que a maioria dos países civilizados já legalizou o aborto voluntário no início de gestação, ela disse que o tema diz respeito à democracia brasileira, sobre retirar a mulher da condição de uma cidadania rebaixada. Ilka Teodoro, que coordena a Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal, afirmou que manter o aborto na ilegalidade criminaliza a mulher, cria sobrecarga no sistema de saúde e fragiliza vidas.
— Por isso, esse debate aqui é sobre as mulheres que escolhemos deixar morrer em decorrência sobre maus procedimentos abortivos — destacou Ilka.
Já a médica Elizabeth Kipman Teixeira afirmou que a legalização reflete a disseminação de uma “mentalidade antivida”. Destacou, ainda, que a prática não é livre de riscos de médio e longo prazo à saúde da mulher, tais como doenças circulatórias, distúrbios cerebrais, câncer e desordens psicológicas e mentais. Eliane Oliveira, também médica e professora da Universidade Federal do Ceará, disse que o aborto “desumaniza e coisifica” a mulher.
— A relação da mulher com a gravidez é de responsabilidade, e não de direito de matar uma criança que não tem condições de se defender — opinou Elizabeth.
A presidente do Conselho Nacional Saúde (CNS), Maria do Socorro Souza, salientou que as mulheres possuem capacidade para refletir e decidir sobre o que é melhor para si mesmas em relação à concepção. Ela criticou posições morais “injustas” com quem opta pelo aborto, sobretudo porque são as mulheres que, historicamente, cuidam da vida ao atender as necessidades das crianças e dos idosos das suas famílias.
Direitos reprodutivos
Maria do Socorro observou ainda que o Brasil é parte em acordos internacionais que obrigam o país a desenvolver políticas em favor dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Em reforço, Rosângela Aparecida Talib, do Movimento Católicas pelo Direito de Decidir, que os direitos reprodutivos são considerados direitos humanos e, portanto, cabe ao Estado atuar para que sejam cumpridos.
— Tudo que a gente quer é que as mulheres sejam recebidas no nosso serviço e que ninguém coloque o dedo no nariz dela para dizer o que deve ou não fazer. Vivemos num páis laico, e é sua consciência esclarecida que vai lhe dar um norte — comentou Rosângela.
Maria Esther Albuquerque Vilela, que representou o Ministério da Saúde, destacou que a assistência no campo dos direitos reprodutivos inclui a obrigação de oferta de serviços públicos de orientação e de amplo leque de métodos contraceptivos.
Rede Cegonha
De militância católica, o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles considerou que a mulher, na realidade, é a grande vítima do aborto. Ele apelou para que o governo implante com todo o rigor o programa Rede Cegonha, a seu ver um bom caminho de proteção à mulher grávida que, por se sentir abandona, acaba optando pelo aborto. Também deseja uma legislação que puna o “machismo” do homem que deixa sem apoio uma mulher grávida.
Autor do projeto do Estatuto do Nascituro, que tramita na Câmara dos Deputados, o ex-deputado federal Luiz Bassuma, um dos mais críticos à sugestão para legaliza o aborto, disse que a prática vai além de um “assassinato”, significando o “roubo de uma vida, seus sonhos e esperanças”. Também condenou a ideia de que o tema “direitos reprodutivos” seja de interesse apenas feminino, não cabendo ao homem opinar.
Mais educação
A senadora Regina Sousa criticou a criminalização do aborto e alerta para um olhar mais humanitário sobre o assunto. Ela relatou a história da sua avó, que era parteira no interior do Piauí e acolhia mulheres que estavam “perdendo o bebê”, como se falava na época.
— A sociedade deve despir-se das questões religiosas, das disputas ideológicas, da guerra dos números e estatísticas e lançar um olhar mais humanitário para a questão do aborto — declarou, apontando as diferenças entre as mulheres ricas e pobres no que se refere à assistência nessas situações.
Participou ainda da audiência o senador Eduardo Amorim (PSC-SE).
Fonte: http://www12.senado.leg.br/
Foto: Senado Federal, via Flickr