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O que há por trás do estigma do tratamento com eletrochoque, eficaz contra depressão grave

A eletroconvulsoterapia, como é chamada atualmente, pode ajudar os pacientes em mais de 80% dos casos – mas a imagem negativa do procedimento gera muitas vezes não permite que isso aconteça

Por BBC

Há 80 anos, médicos da Universidade La Sapienza, em Roma, na Itália, aplicaram uma corrente elétrica de 100 volts no cérebro de um homem de 39 anos. Ele tinha sido encontrado pela guarda municipal uma semana antes, vagando pelas ruas e murmurando palavras que ninguém conseguia entender.

Desorientado, o paciente não identificado foi diagnosticado com esquizofrenia severa e avançada.

Em poucas semanas, no entanto, o homem misterioso voltaria a conversar, a morar em sua própria casa e a dormir ao lado da esposa. Também retornaria ao trabalho como engenheiro, em Milão.

Ele foi o primeiro paciente a receber o tratamento que mais tarde seria conhecido como eletrochoque ou eletroconvulsoterapia (ECT). Embora os sintomas tenham voltado em poucos meses, ele e os médicos sabiam que era possível tratar.

Atualmente, a ECT é vista com frequência como uma ferramenta de tortura cruel, prejudicial ao cérebro, sem espaço na medicina moderna. Mas ainda é o tratamento mais eficaz para um pequeno grupo de doenças mentais.

Apesar de ninguém saber realmente como funciona, a terapia de choque pode ajudar, em mais de 80% dos casos, a eliminar os piores sintomas da mania, da catatonia (condição mental que deixa os pacientes retraídos, mudos e apáticos) ou da depressão grave, que pode levar ao suicídio.

A ECT está longe de ser perfeita. Não é capaz de curar um paciente, por exemplo, e precisa ser repetida com intervalos de poucos meses para evitar que os sintomas originais voltem. Sem contar que há risco de perda de memória (geralmente temporária), de dores de cabeça e no maxilar.

Mas será que os efeitos colaterais justificam o estigma contínuo associado ao tratamento? A quimioterapia, por exemplo, vem acompanhada de náuseas e outras reações adversas, além de muitas vezes não ser bem-sucedida. No entanto, continua sendo a parte mais importante nos tratamentos contra o câncer.

Para muitas pessoas, a ECT poderia ser a salvação. O suicídio (frequentemente associado a transtornos mentais) é a quarta maior causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil – e a segunda a nível mundial. A depressão, por sua vez, é uma das doenças mais incapacitantes globalmente, consumindo os anos mais saudáveis de nossas vidas coletivas.

Mas, afinal, o que é verdade sobre a eletroconvulsoterapia?

A origem da eletroconvulsoterapia
Todas as manhãs, às 9h, o alarme do celular toca, me lembrando de tomar os antidepressivos.

Ao contrário dos medicamentos anteriores, esses parecem fazer efeito, combinados com sessões regulares de análise e dois cursos de terapia cognitivo-comportamental (TCC).

Não tenho crise de depressão há quase quatro meses. Antes disso, seriam apenas algumas semanas ou um mês de intervalo entre um período de depressão e outro.

Não estou curado, estou somente em remissão. A depressão vai voltar – seria ingênuo da minha parte pensar de outra forma. A falta de interesse em atividades antes agradáveis, a incapacidade de amar meus entes queridos, os pensamentos assombrosos do suicídio: todos vão voltar.

Mas, independentemente se vai durar meses ou anos, a libertação dessas algemas não tem preço.

Às vezes, me pergunto como seria medicado se tivesse nascido em outra época.

Na virada do século 20, poderia ter sido internado em um dos hospitais psiquiátricos no interior do Reino Unido. Na década de 1930, teriam me receitado anfetaminas – drogas psicostimulantes, como o ecstasy –, que foram comercializadas como os primeiros antidepressivos. E nos anos 1940, década em que meus avós tinham a idade que tenho hoje, eu seria submetido à eletroconvulsoterapia.

Naquela época, a terapia de choque era tão popular que costumava ser aplicada em regime ambulatorial. Era como ir ao dentista. As pessoas marcavam uma consulta com o médico, recebiam uma sessão de ECT e voltavam para casa no mesmo dia.

De acordo com uma pesquisa realizada em 1980, 50% dos entrevistados tinham mais medo do dentista do que da ECT.

A ideia de induzir convulsões para tratar doenças mentais partiu de Ladislas von Meduna, neurologista da Universidade de Budapeste, na Hungria.

Assim como outros médicos que trabalhavam em hospitais psiquiátricos, ele reparou que pacientes com esquizofrenia apresentavam melhora após uma crise convulsiva – normalmente desencadeada pela ingestão de drogas pesadas. As alucinações, falas sem sentido e delírios costumavam desaparecer.

Embora os sintomas voltassem com o tempo, essa observação abriu uma nova perspectiva para os tratamentos psiquiátricos. Se encontrasse uma maneira de induzir convulsões, pensou Meduna, talvez conseguisse acabar com as formas mais resistentes de doença mental.

Em 1934, o neurologista usou uma droga chamada cardiazol (comercializada como metrazol nos EUA), que induzia convulsões em questão de minutos ou até mesmo segundos, ao ser injetada no músculo. Depois de recuperar a consciência, pacientes outrora catatônicos se levantavam da cama, se vestiam e, em alguns casos, falavam pela primeira vez após anos.

A nova terapia gerou bastante burburinho. As pessoas se perguntavam se certas doenças ou condições, até então incuráveis, seriam em breve remediadas.

Ao ouvir falar do cardiazol, Ugo Cerletti, presidente do Departamento de Doenças Mentais e Neurológicas da Universidade La Sapienza, lembrou que conhecia um método melhor de induzir convulsões.

Ele vinha usando há anos pequenas descargas elétricas para estimular ataques epilépticos em animais, como parte de um experimento. O procedimento era instantâneo, barato e altamente monitorável. Ao contrário do cardiazol, que variava de potência, a eletricidade era dividida em duas variáveis básicas: número de volts e frações de segundo.

Lucio Bini, aluno de Cerletti, desenvolveu um equipamento baseado nesses dois parâmetros. Enquanto um mostrador controlava a voltagem, um cronômetro automático era capaz de limitar o choque a um décimo de segundo.

Conectada à fiação elétrica de um interruptor de luz, a “máquina de eletrochoque Cerletti-Bini” emitia a corrente elétrica por meio de dois eletrodos, envoltos em um pano embebido em solução salina. Eles eram colocados um de cada lado da cabeça do paciente, acima das têmporas.

O que acontecia na sequência não era bonito de se ver.

Como todos os músculos se contraiam de uma só vez, o corpo do paciente se contorcia para trás – lembrando fósseis de dinossauros ou posições excêntricas de ioga. Os dentes apertavam um pedaço de tubo, enquanto o ar sibilava dos pulmões. Pernas e braços se debatiam violentamente. Fezes, urina e até sêmen, no caso dos homens, podiam ser expelidos do corpo, como resultado da tensão de cada tendão. Alguns ossos acabavam fraturados, especialmente aqueles localizados na coluna, ao redor dos ombros e quadris. Eram fraturas sutis, observadas apenas em raios-X e que cicatrizavam rapidamente, mas obviamente indesejáveis.

Eram registrados ainda relatos de perda de memória. Após recuperarem a consciência, alguns pacientes se perguntavam onde estavam, como tinham chegado até ali e com quem eram casados. Embora as lembranças retornassem, geralmente em dias ou semanas após o tratamento, algumas pessoas pareciam perder a memória para sempre.

“Um cirurgião não recusa uma operação necessária por causa dos riscos iminentes… Os distúrbios mentais são tão destrutivos quanto uma eclosão maligna e muito mais terríveis no que se refere ao sofrimento que podem causar. Os riscos são, portanto, justificados”, escreveu Lothar Kalinowsky, ex-colega de Cerletti, em resposta aos críticos da ECT, em 1946.

De fato, apesar de todas as desvantagens, a ECT era extremamente eficaz no tratamento de algumas das doenças mentais mais complexas – especialmente a depressão grave.

Em 1945, um estudo conduzido por dois psiquiatras do Hospital McLean, em Massachusetts, nos EUA, mostrou que a terapia impedia, em 80% dos casos, o desenvolvimento de uma crise profunda de depressão. Pelo menos dois de seus pacientes, que sofriam com a condição há mais de 10 anos, conseguiram pela primeira vez uma trégua, após seis ou sete sessões de ECT, realizadas ao longo de algumas semanas.

Assim como o calor do incêndio florestal é vital para soltar as sementes de dentro da casca das pinhas, uma rápida descarga de eletricidade – e, principalmente, a convulsão que ela causa – parece libertar a pessoa da espessa armadura psicológica em que estava enclausurada.

Ou como Peter Cranford, psiquiatra do Hospital Estadual de Milledgeville, na Geórgia, nos EUA, observou em seu diário na década de 1950: “Estupor catatônico num dia, jogando basquete no outro”.

Da história a Hollywood
Desde o início, a ECT foi mal utilizada e, às vezes, desrespeitada.

Em 1944, Emil Gelny, médico de dois hospitais psiquiátricos na Áustria e membro do Partido Nazista, modificou um aparelho de eletrochoque para uso no programa de eutanásia T4 de doentes mentais.

Quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, ele acrescentou mais quatro eletrodos a uma máquina de ECT, permitiu que a corrente elétrica fluísse por minutos (e não milissegundos) e executou 149 pacientes cujas vidas considerava “inúteis”.

Embora muito mais gente tenha morrido vítima de doses letais de drogas ou desnutrição, o trabalho de Gelny lançaria, compreensivelmente, uma sombra negra sobre o futuro da ECT.

De uma maneira geral, o procedimento era aplicado indiscriminadamente. Em 1946, dois psiquiatras de Siena, na Itália, relataram: “Hoje não há nenhuma doença mental em que (a ECT) não tenha sido testada”.

Isso incluía a homossexualidade, que os três primeiros volumes do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (publicados entre 1950 e 1980) a classificavam como uma forma de doença mental.

O uso generalizado da terapia – muitas vezes sem consentimento – era uma maneira de controlar pacientes violentos. Depois de uma sessão, eles ficavam sonolentos e atordoados e, portanto, mais maleáveis. Era uma forma de custódia, não de cura.

No livro A Redoma de Vidro, de 1963, a romancista Sylvia Plath conta sua experiência destrutiva com a ECT uma década antes.

“Alguma coisa dobrou-se dentro de mim e me dominou e me sacudiu como se o mundo estivesse acabando. Ouvi um guincho, iiii-ii-ii-ii-ii, o ar tomado por uma cintilação azulada, e a cada clarão algo me agitava e moía. Eu achava que meus ossos se quebrariam e a seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio. Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível.”

Essa é a descrição da ECT que povoaria o imaginário popular por décadas. A mesma que rendeu um Oscar a Jack Nicholson por sua atuação em Um Estranho no Ninho (1975). No filme, seu personagem Randle McMurphy, que se passa por louco, é submetido ainda a uma lobotomia (intervenção cirúrgica) na região frontal do cérebro.

Mas Hollywood é ficção. Já na década de 1940, a terapia de choque era realizada com o auxílio de anestesia e relaxantes musculares, que impediam o corpo de convulsionar. Assim, o paciente permanecia dormindo durante todo o procedimento, evitando fraturas e excreções.

O primeiro composto anestésico a ser usado era extraído de uma trepadeira amazônica, chamada curare – e era combinado com sedativos fortes. Mas, como podia paralisar a respiração, levou a um aumento no número de mortes (quatro em 11 mil pacientes em 1943).

Na década de 1950, o cloreto de suxametônio passou então a ser utilizado no lugar do curare, junto com anestesia geral. E, atualmente, o tratamento é bem diferente do que Sylvia Plath descreveu em seu livro. Leia a reportagem completa.

 

Foto: FHEMIG/ Divulgação