Filhos de grávidas expostas regularmente a poluentes, moradoras de cidades com pouca acessibilidade e adeptas de estilos de vida pouco saudáveis apresentam risco aumentado de desenvolver pressão alta. Relação é constatada em estudo com 2,6 mil voluntários
Por Correio Braziliense
Antes mesmo de nascer, os seres humanos são afetados por agrotóxicos, poluentes e outros elementos químicos prejudiciais à saúde. Na barriga da mãe, o bebê sofre influência de fatores ambientais externos, e as consequências dessa exposição indireta podem aparecer ao longo da vida e nunca mais desaparecer. O alerta é feito por pesquisadores do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal), na Espanha, que identificaram uma relação entre ambientes insalubres a que grávidas são submetidas e o desenvolvimento de hipertensão nos filhos dessas mulheres. A pesquisa foi publicada na revista American College of Cardiology.
O estilo de vida pouco saudável da mãe, como obesidade, sedentarismo, dieta inadequada e consumo de álcool e tabaco, é estabelecido como fator de risco para o desenvolvimento de doenças cardíacas nos filhos. Nos últimos anos, os estudos começaram a vincular esses elementos ao status de pré- hipertensão em crianças e à possibilidade de desenvolvimento da doença. A equipe do ISGlobal traz novos elementos relacionados à hipertensão.
Os pesquisadores comprovaram que, desde o estágio fetal à pré-adolescência, os alimentos, a qualidade do ar e os compostos químicos que atingem o organismo humano podem afetar a pressão arterial de meninos e meninas. “Esse estudo é o primeiro a relacionar os possíveis efeitos da exposição a centenas de fatores ambientais durante o início da vida à pressão alta em crianças”, frisa Charline Warembourg, principal autora do estudo e pesquisadora de pós-doutorado do ISGlobal.
No primeiro momento, a equipe de cientistas analisou dados de cerca de 1.300 pares de mães e filhos, participantes do projeto Helix. As crianças tinham entre 6 e 11 anos e não apresentavam problemas de saúde. Elas foram acompanhadas por três anos e, durante esse tempo, submetidas a diversos exames clínicos, como coletas de sangue e de urina. Nos dias dos testes, os cientistas realizavam três medições da pressão arterial nos voluntários, com intervalos de um minuto entre cada. Ao fim, constatou-se que 10% das crianças eram classificadas como pré-hipertensas.
Na segunda parte do estudo, os pesquisadores avaliaram 89 fatores de exposição materna pré-natal e 128 de exposição dos filhos após o nascimento. A partir desses dados, definiram quatro fatores mais amplos: o ambiente de convívio, a temperatura externa, a ingestão de peixes e a exposição a produtos químicos durante a gravidez. “Esses fatores foram determinados como influência do status da pressão arterial em crianças”, explica Charline Warembourg.
Com relação à avaliação do ambiente, os pesquisadores examinaram dados geoespaciais ligados ao histórico de endereços residenciais dos participantes, considerando fatores como poluição do ar e ruídos. Para avaliar os efeitos dos produtos químicos, a equipe analisou as amostras de urina e de sangue coletadas das gestantes e, posteriormente, dos filhos. Também foram aplicados questionários para avaliar o estilo de vida das mães — os itens tratavam de questões como dieta, uso de tabaco e prática de atividade física. “Depois de todas as etapas, usamos métodos estatísticos avançados para relacionar essas exposições ambientais ao aumento da pressão arterial nas crianças”, conta a autora principal.
Áreas verdes
Os resultados foram surpreendentes, segundo Charline Warembourg. Os dados das mulheres que, durante a gestação, viviam em um ambiente urbano e mais acessível, próximo a espaços verdes e com fácil acesso ao transporte público mostraram que os filhos delas não tinham risco de se tornarem hipertensos. Ao contrário, meninos e meninas nascidos de grávidas que moravam em um ambiente mais rural e de difícil acesso eram mais propensos a desenvolver a doença crônica.
“Fatores de design urbano, como o número de lojas, restaurantes, parques e centros de transporte público, determinam como as pessoas usam a cidade e se movimentam por ela. Esses fatores são importantes para a saúde porque promovem atividade física e contato social”, explica Xavier Basagaña, um dos autores do estudo e pesquisador do ISGlobal.
A equipe também constatou que a exposição a temperaturas mais baixas pode deixar as crianças mais vulneráveis ao surgimento da hipertensão. A ingestão de peixes durante a gravidez também merece cuidado. “Embora os ácidos graxos ômega-3 sejam benéficos à saúde cardiovascular geral, os peixes contaminados por produtos químicos ou metais podem reduzir os efeitos positivos”, explica Charline Warembourg.
A exposição de grávidas à fumaça do tabaco; a concentrações de perfluorooctanoato (PFOA), químico encontrado em cosméticos, produtos de limpeza domésticos e roupas; e de bisfenol-A (BPA), químico encontrado em plásticos, também esteve associada ao risco amentado de surgimento da doença na prole. “Algumas das associações, como a da fumaça do tabaco e do bisfenol-A, já haviam sido observadas em adultos. Outras associações, como a ingestão de peixe durante a gravidez, são mais difíceis de interpretar”, pontua Warembourg.
Prevenção
Segundo Pamela Cavalcante, cardiologista no Hospital do Coração do Brasil, o estudo pode contribuir para que mulheres gestantes e em idade fértil mudem os hábitos, prevenindo, assim, doenças cardiovasculares nos filhos. “Sabemos que a hipertensão arterial sistêmica tem um componente genético, mas a manifestação da doença é influenciada pelo estilo de vida. Porém, os fatores ambientais mostrados no estudo ainda não haviam sido diretamente relacionados à ela. Não tínhamos evidências significativas que sustentassem isso”, justifica.
A médica destaca que que o trabalho também tem um forte componente de estímulo à prevenção. “Uma vez que conhecemos os fatores de risco que estão associados a um risco ampliado de desenvolvimento de determinada doença, temos a opção de evitá-los ou modificá-los”, justifica. Pamela Cavalcante, porém, afirma que é preciso ter cautela na interpretação dos resultados, considerando, por exemplo, que novos estudos precisam ser realizados.
“Uma das premissas que devemos considerar na análise de resultados em pesquisa clínica é se há plausibilidade na associação encontrada. Não há outros estudos dessa magnitude que tenham demonstrado essa relação direta antes e, talvez, essa seja a maior importância da pequisa atual: levantar hipóteses que possam ser melhor avaliadas em estudos com delineamento específico para responder a essas questões”, diz a médica brasileira.
A equipe de pesquisadores também espera desmembramentos promissores dos resultados obtidos. “Esse trabalho pode potencialmente levar à implementação de novas diretrizes preventivas e políticas governamentais, como a modificação do planejamento urbano e de transporte da cidade para melhorar a saúde das pessoas. Isso reduziria a poluição do ar, o ruído, as ilhas de calor e promoveria a atividade física e as interações sociais”, pontua Warembourg. Ele e os colegas planejam seguir acompanhando as crianças participantes do estudo até idades mais avançadas.
Parceria europeia
O projeto de pesquisa europeu teve início em 2013 e foi criado para estudar os efeitos de centenas de fatores ambientais na saúde infantil. Conta com a colaboração de pesquisadores de instituições de seis países na Europa: Espanha, França, Grécia, Lituânia, Noruega e Reino Unido. Cada um deles representa um grupo de estudo e é responsável por realizar pesquisas sobre nascimentos.
Palavra de especialista
Base para novos estudos
“A partir desse estudo, podemos estudar mais a fundo esses fatores de risco e entender como eles atuam no surgimento da hipertensão, trazendo maior compreensão de como podemos combater a doença e, principalmente, evitá-la. Ele vai servir como base para uma série de novas pesquisas que vão melhor avaliar os fatores relacionados a aumentos pressóricos. Já existem vários trabalhos demonstrando os cuidados que as mães devem ter durante a gestação, e esse estudo veio incorporar a atenção a alguns outros fatores a serem observados, a fim de evitar o desenvolvimento da hipertensão e as futuras consequências aos filhos”, Thomas Edison Cintra Osterne, cardiologista do Instituto do Coração de Taguatinga e especialista em cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Monitoramento a partir dos 3 anos
As causas da hipertensão em crianças são semelhantes às dos adultos. Segundo Isabela de Carlos Back, presidente do Grupo de Estudos de Prevenção do Departamento de Cardiologia Pediátrica e Cardiopatias Congênitas da Sociedade Brasileira de Cardiologia, entre 2 e 10 anos, pode-se descartar razões mais graves para a doença.
“Nas crianças menores, devemos nos preocupar com causas endócrinas, algumas arterites e ainda causas renais”, explica. “Já a partir dos 10 anos, devemos nos preocupar com problemas genéticos, como a tendência familiar para hipertensão, além da obesidade, da alimentação, do sedentarismo e do fumo.”
A estimativa é de que, no Brasil, entre 2% e 4% das crianças tenham hipertensão arterial. Apesar da maioria dos problemas surgirem mais tarde, a especialista recomenda que esse indicativo de saúde comece a ser monitorado anualmente a partir dos 3 anos de idade.
“A criança hipertensa pode ter complicações renais, cerebrais e oculares, como os adultos, mas é mais raro. De qualquer forma, é o fator de risco cardiovascular que traz mais precocemente sequelas para o coração, além de predispor, desde cedo, a complicações como aterosclerose, acidente vascular cerebral ou infarto. É muito importante saber que uma criança ou um adolescente com hipertensão terá, muito provavelmente, hipertensão na vida adulta, com todas as complicações já conhecidas.”
Foto: Valdo Virgo