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Muito além do piso: enfermagem ganha protagonismo e se prepara para uma nova era da saúde

Com equipes multidisciplinares e coordenação do cuidado, profissionais de enfermagem se preparam para a saúde digital e visão empreendedora

Por Futuro da Saúde

A pandemia de Covid-19 trouxe os holofotes aos profissionais da saúde e mostrou à sociedade a importância de cada um deles na atenção aos pacientes. Mesmo o modelo de cuidado ainda sendo muito focado no papel do médico, é inegável que sem uma equipe composta por diferentes áreas, não há uma integração plena do cuidado. Com o avanço da tecnologia, o papel da enfermagem tem se transformado nas últimas décadas e requer atualização constante e dedicação dos profissionais para atender a demanda do mercado e de pacientes. Da mesma forma, novas áreas de atuação, como as clínicas de enfermagem, começam a eclodir pelo Brasil e ganham notoriedade.

A categoria tem sido destaque há algum tempo, desde que foi proposto o piso salarial. No Dia Internacional da Enfermagem, 12 de maio, o governo federal oficializou a liberação de 7,3 bilhões de reais para estados e municípios custearem o piso. Em abril, mais recursos também haviam sido liberados para que santas casas e hospitais filantrópicos conseguissem cobrir a adequação salarial, um montante de R$ 2 bilhões. Já na segunda-feira, 15, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou parcialmente uma medida liminar que suspendia o pagamento do piso até encontrar as possíveis fontes de recursos. Ela irá à referendo em plenário virtual no próximo dia 19.

Contudo, o debate segue girando em torno de como os hospitais privados e a saúde suplementar conseguirão arcar. As instituições privadas alertam que, com a adequação salarial dos profissionais, correm o risco de fechar leitos e realizar demissões, já que o impacto previsto é de R$ 7 bilhões anuais, além de ameaçar a qualidade da assistência prestada. Ao suspender a liminar, o STF apontou que no setor privado, existe “a possibilidade de que, em negociações coletivas, se convencione diferentemente da lei, tendo em vista a preocupação com eventuais demissões”. Entretanto, entidades sempre reforçaram que eram a favor da valorização de enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras, profissionais que foram contemplados pela lei.

Com melhores remunerações e mais abrangência, a enfermagem deve se fortalecer cada vez mais em busca de mais autonomia, trabalhando com equipes multidisciplinares, coordenando os cuidados e mobilizando a saúde. A categoria ainda deve buscar avanços em outras demandas, como a jornada de 30 horas e as salas de descompressão, que apesar de se tornarem lei no estado de São Paulo em 2020, foi declarada inconstitucional pelo STF em março deste ano.

Enfermeiro 4.0

Wearables, aplicativos, inteligência artificial, telessaúde. Se a saúde 4.0 chegou para inserir a tecnologia na rotina dos hospitais e atendimentos ao paciente, vai ser preciso que os profissionais estejam capacitados e prontos para orientar e manusear tais ferramentas. O enfermeiro, que está em contato direto com o paciente, deve participar ativamente do processo.

“A enfermagem tende a ser cada vez mais uma profissão que vai buscar essa interligação entre o humano e a tecnologia, dado que uma das principais características do profissional é a empatia, de perceber e entender a necessidade do outro. Com o avanço tecnológico que nós temos percebido e tendo cada vez mais a necessidade, que virá com o tempo, a enfermagem vai se solidificar cada vez mais”, afirma James Francisco dos Santos, presidente do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP).

Essa é uma das principais frentes que o “enfermeiro do futuro” irá atuar, junto à saúde digital. Com o reconhecimento da importância que os profissionais têm na coordenação do cuidado, acredita-se que ele terá mais autonomia para trabalhar e assumir cada vez mais um protagonismo.

“Autonomia é conquista e ela está acontecendo pelos movimentos que estão ocorrendo. Hoje nós precisamos realmente de enfermeiros visionários, empreendedores e protagonistas de novos processos. A enfermagem tem esse potencial e acredito que estão caminhando para isso. O enfermeiro vai ser um dos principais profissionais do futuro”, defende a professora Dirce Stein Backes, pesquisadora e docente de Enfermagem da Universidade Franciscana (UFN).

Backes também defende que o enfermeiro deve assumir uma postura de empreendedor social, buscando mobilizar a comunidade e a população em prol do bem-estar e da saúde. Como ele é o profissional que muitas vezes as pessoas têm o primeiro contato nas unidades de saúde, principalmente no setor público, tem uma possibilidade maior de atuar na promoção da saúde.

Empreendedorismo na enfermagem

Outra frente de atuação possível diz respeito às clínicas e consultórios de enfermagem. O trabalho envolve a orientação à população em diversas áreas (amamentação, gravidez, etc.), assim como a aplicação de vacinas e medicamentos, manutenção de curativos e monitorar o estado de saúde dos pacientes. De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), existem mais de 330 empresas registradas com o termo “enfermagem”.

“A cultura do empreendedorismo na enfermagem tem se tornado cada vez mais forte. Em São Paulo se criou no Coren-SP o Grupo de Trabalho de Enfermagem, Empreendedorismo e Inovação. A nova era vai permitir que os profissionais de enfermagem desenvolvam seu lado autônomo, que ele é capaz de tomar condutas, prescrever cuidados e assistir doentes de forma integral”, acredita James, presidente do Conselho Regional.

Já a professora Dirce Stein Backes, que coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Empreendedorismo Social na Enfermagem e Saúde (GEPESES) na UFN, aponta que a mudança da visão do médico no centro do cuidado, assim como um novo olhar sobre o papel do hospital na atenção à saúde, beneficiam essas possibilidades. Ainda, acredita que existe todo um movimento dos conselhos e profissionais para alavancar esse empreendedorismo.

“O cuidado de enfermagem ou ele é empreendedor ou ele não é cuidado. Se você parte do princípio que o paciente é singular, ele vai demandar sempre um cuidado novo, diferenciado e empreendedor. Aos poucos vejo o quanto os enfermeiros estão se empoderando da questão da liderança e do empreendedorismo na enfermagem, mas transcende para a área da saúde”, conclui.

Papel do enfermeiro

O Brasil tem mais de 600 mil enfermeiros, de acordo com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen). É um número superior ao de médicos, fisioterapeutas, psicólogos e outras categorias da saúde. Ainda, possuem o apoio de 1,5 milhão de técnicos de enfermagem e 447 mil auxiliares.

Com um contingente tão grande, é impossível não se dar conta sobre a importância da função para o cuidado com pacientes e promoção da saúde. Principalmente no SUS, onde é realizado a atenção primária à grande parte da população brasileira, são os enfermeiros que recebem e orientam a população.

“Tanto na gestão, quanto na assistência, vínculo e inserção com a comunidade. É um profissional por excelência sensível e empático. Esse primeiro contato com as pessoas na atenção básica é feito pelo enfermeiro, e ele faz muito bem”, explica Backes, da UFN. De acordo com a professora, no SUS, o protagonista é o enfermeiro. Ainda, ela afirma que por ser um modelo de sistema de saúde para o mundo, países europeus têm procurado o Brasil para entender e replicar o modelo de atenção primária, com foco no papel da enfermagem.

A pandemia acabou por mostrar a sociedade essa importância. Apesar de ter menos visibilidade que a figura do médico, grande parte da população que precisou de atendimento hospitalar ou foi vacinada contra a Covid percebeu que quem atuava na ponta e na beira do leito eram os enfermeiros, reconhecendo seu papel essencial.

“Nosso colegas da área da saúde já sabiam da importância da enfermagem, mas isso hoje se tornou um elo muito forte em todas as cadeias e segmentos. Todos sabem que a ausência de um profissional de enfermagem consequentemente vai causar um dano a saúde de todos. O médico não consegue fazer todos os procedimentos sozinhos, precisa de uma equipe multidisciplinar”, defende James Santos, presidente do Coren-SP.

Esse reconhecimento foi essencial para a categoria buscar a aprovação do piso salarial junto à sociedade e ao Congresso. A pressão corpo-a-corpo e nas redes sociais garantiu que, mesmo com questões orçamentárias e falta da definição de recursos para absorver o impacto ao setor, tivesse uma votação quase unânime no Senado e na Câmara dos Deputados, com apenas 12 votos contrários dos mais de 461 congressistas presentes.

Correção histórica

A lei do piso salarial de enfermagem só foi sancionada através de um trabalho árduo de lideranças, entidades e conselhos. É o que acredita James, presidente do Coren-SP: “A aprovação do piso não é um reconhecimento, mas uma correção histórica de mais de 2 décadas de luta de uma profissão extremamente valorosa que teve na pandemia a visibilidade da sociedade”.

Uma pesquisa publicada na revista científica Research, Society and Development analisou o salário dos enfermeiros e técnicos de enfermagem em todo o Brasil, entre 2003 e 2018, no setor público e privado. Os pesquisadores apontaram que no período houve uma defasagem no salário dos enfermeiros, com uma mediana de 4.135 reais em 2003 e 4.099 reais em 2018.

Mesmo que os valores não sejam tão abaixo do piso aprovado, de 4.750 reais, é preciso levar em consideração que existem variações de acordo com a região do país em que o profissional trabalha, assim como as diferenças entre os salários praticados pelo SUS e pela saúde suplementar.

“O salário mínimo nos 15 anos analisados teve um ganho real acima da inflação, o que não aconteceu com o salário dos enfermeiros. Esse não ganho fez com que o salário fosse sendo estagnado, e tivesse uma aproximação com os salários de técnicos. A partir de 2016, com a PEC da contenção de gastos, o reajuste quando muito equiparou a inflação, que vinha se apresentando em uma tendência crescente também”, explica Luiza Jane Eyre de Souza Vieira, professora da Universidade de Fortaleza (Unifor) e uma das pesquisadoras do estudo.

No período, o salário das técnicos de enfermagem aumentou em média cerca de 34,6%, enquanto dos enfermeiros subiu uma média de 9,2%, tendo ambos uma grande desaceleração após 2013. O relatório da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil de 2017, realizado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), aponta que 32% dos enfermeiros no país ganham até 3 mil reais.

Essa defasagem salarial também pode implicar em outras questões da profissão, como a busca por mais de um emprego para compor a renda. James, do Coren-SP, alerta que 84% da categoria é formada por mulheres, o que pode ter impacto ainda maior por assumirem responsabilidade em jornadas triplas ou quádruplas, com os cuidados com a casa e os filhos.

De acordo com Jane Eyre, existe uma tendência de serviços privados substituírem os profissionais com formação por técnicos. No serviço público a questão é um pouco diferente. “Após a última atualização da Política Nacional de Atenção Básica, se flexibilizou o quantitativo com algumas atribuições podendo ser realizadas por profissionais de nível médio em áreas muito áridas para fixação de profissionais, e contribuiu para a precarização, o que implica na sobrecarga dos enfermeiros diante da demanda nos serviços de saúde”, alerta a professora da Unifor.

O piso salarial vem como um marco para a categoria, mas pode sofrer com a falta de normas para o reajuste anual, ficando por conta de acordos dos empregadores e dissídios coletivos da categoria. Além disso, é preciso que o STF aprove em plenário virtual, previsto para 19 de maio, a decisão de suspender a Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pelas entidades de hospitais privados, para a real efetivação do piso. Caso aprovada, o piso entra em vigor no setor privado em 1º de julho.

Foto: Reprodução/Futuro da Saúde

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