Com texto substitutivo, PL das pesquisas clínicas altera o acesso a medicamentos pós-estudo, restringe o uso de placebo e mantém o Conep
Por Futuro da Saúde
O Senado Federal aprovou nesta terça-feira (23) o projeto de lei que institui novas regras para pesquisas clínicas no Brasil. Sendo uma demanda da indústria farmacêutica para trazer mais segurança jurídica aos patrocinadores e atrair mais investimentos para o país, o texto define a regulamentação para a realização de estudos no país. Agora, segue para sanção presidencial.
Apesar de tramitar desde 2015 no Senado e desde 2017 na Câmara dos Deputados, a discussão sobre o projeto de lei ganhou força em novembro do ano passado, quando o deputado federal Pedro Westphalen (PP-RS), relator do texto, apresentou parecer sobre as emendas. A Câmara aprovou o texto, que seguiu para o Senado.
O senador Dr. Hiran (PP-RR), relator da casa, apresentou um texto substitutivo, que foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) no dia 17 de abril. No mesmo dia, o plenário do Senado aprovou a tramitação em urgência, fazendo com que o projeto deixasse de tramitar em outras comissões antes de ir a votação.
“Aquelas pessoas que têm doenças raras e câncer de difícil tratamento, que precisam tanto de inovações e anticorpos monoclonais que são fabricados mundo afora e que terminam sendo fabricados em outros lugares porque nós não tínhamos legislação adequada para recepcionar pesquisas multicêntricas no nosso país, agora terão esse marco legal, pareado com os países que fazem mais pesquisas clínicas no mundo”, disse o senador Dr. Hiran, durante a sessão no Senado que aprovou o texto.
O novo texto aprovado traz alterações com temas que foram defendidos por associações de pacientes e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão responsável pela aprovação dos estudos com humanos no Brasil. A principal delas é a permanência do sistema composto pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e pela Conep, como entidades fiscalizadoras e qualificadoras do processo.
Por outro lado, a indústria farmacêutica defendia uma redução do período de acesso a medicamentos pós-estudo, que até então era indeterminada, ou seja, as empresas eram obrigadas a custear drogas aos participantes enquanto fossem necessárias ao tratamento. Agora, com a aprovação do projeto de lei, esse acesso foi reduzido para 5 anos após o registro como medicamento, o que segundo a indústria equipara as regras do Brasil a de outros países do mundo, além de trazer mais previsibilidade aos patrocinadores.
“O ecossistema de pesquisa brasileiro ainda precisa de desenvolvimento em relação à capacidade instalada nos centros de pesquisa. Mas acredito que a partir de 2025 veremos resultados em relação à aprovação do projeto de lei. As pesquisas realizadas atualmente foram aprovadas algum tempo atrás, mas existem pesquisas aprovadas todos os dias. Esperamos que com a aprovação dessas novas regras, se aprove novas pesquisas para o Brasil e daqui alguns meses comecemos a ver um incremento”, afirma Renato Porto, diretor-presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
De acordo com a Interfarma, a expectativa é de que o projeto de lei aprovado torne o Brasil mais competitivo dentro do cenário de pesquisa mundial, saltando da 20ª para a 10ª colocação entre os países que mais realizam pesquisa no mundo, com um potencial de atrair cerca de 3 bilhões de reais em investimentos.
Manutenção do prazo e alterações
A pesquisa clínica no Brasil carecia de segurança jurídica. A análise, feita pela indústria farmacêutica, era considerada uma das principais causas de o país não atrair mais estudos mundiais descentralizados, que envolvam a participação de diferentes países e populações com diferentes características.
“Vemos absolutamente positiva a aprovação do PL, era uma grande demanda da Interfarma. Equilibra e harmoniza a pesquisa clínica do Brasil com todos os países do mundo, o que nos coloca de igual para igual. O Brasil tem uma capacidade muito grande de execução de pesquisas, tendo em vista ser um mercado qualificado com regras bem desenvolvidas, ter uma população heterogênea e com uma parcela grande da população urbana”, argumenta Porto.
Por isso, a aprovação do projeto de lei é considerada um grande passo para o setor no país, que deve ganhar novos estudos. De acordo com a Interfarma, as novas regras adotadas se assemelham ao que é praticado em outras partes do mundo, principalmente entre os países mais procurados.
O texto final aprovado trouxe poucas mudanças, mas que o diretor-presidente da entidade considera importante esclarecer. É o caso, por exemplo, da restrição ao uso de placebo, que só deverá ser utilizado em estudos clínicos quando não houver um tratamento conhecido e disponível para aquela doença, para que o participante receba os medicamentos ou terapias existentes ao invés do placebo.
“O grande passo olhando para o futuro é de fato a manutenção do custeio de medicamentos pós-estudo por um prazo de 5 anos. É um ponto bem crítico para nós e houve a continuidade dessa restrição. Esses foram os pontos que foram alterados ou mantidos para que tenhamos avanços em relação às regras de harmonização, trazendo equilíbrio entre as regras do Brasil com o resto do mundo”, afirma Porto.
A indústria farmacêutica defendia que, caso não houvesse prazo determinado, seria inviável para empresas realizarem pesquisas clínicas no Brasil, por não haver previsibilidade sobre os custos. Agora, a indústria fornecerá o medicamento até 5 anos após a disponibilidade comercial ou a incorporação ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Com a aprovação do projeto, a Interfarma analisa que alguns impactos devem ser imediatos, como a inclusão do Brasil em pesquisas globais utilizando a nova regulamentação. No entanto, aponta que o Brasil ainda precisa avançar na estrutura para a realização desses estudos. Para isso, a entidade tem construído parcerias com universidades, Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (ABRACO) e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), com o intuito de qualificar os centros que realizam essas pesquisas.
Diálogo com o Conep e outras demandas
“É possível construir coletivamente, mesmo na diferença. Ocupamos papéis muitas vezes antagônicos. Somos a favor de mais pesquisas no Brasil, como a indústria também é. Também apostamos que a pesquisa que vale a pena ser feita no Brasil é a pesquisa com garantia da ética, e eles também pensam assim. Divergimos no quanto a gente protege o participante”, afirma Lais Bonilha, coordenadora da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
O texto substitutivo aprovado no Senado garante a continuidade do sistema no país, que deve ser regulamentado pelo Executivo, e foi celebrado pela coordenadora por ter conseguido alterar alguns pontos do projeto anterior, que tramitou na Câmara. Com apoio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS), o Conep levou suas demandas aos senadores e conseguiu êxito em parte delas.
“O sistema CEP/Conep é grande e bem estruturado, embora tenha necessidades de melhorias. Ele consegue proteger o participante, garante a ética e a segurança da pesquisa e, consequentemente, uma maior tranquilidade das pessoas em aderir. A manutenção do sistema foi um grande avanço, junto ao reconhecimento de que ele precisa ficar no controle social para que as pessoas participem mais do processo de atualização das regras”, avalia Bonilha.
Entre as mudanças, está a exclusão do Documento de Compromisso e Isenção (DCI). Nele, instituições de pesquisas brasileiras isentariam os patrocinadores de eventuais danos causados aos participantes da pesquisa. De acordo com a coordenadora do Conep, o documento colocava em risco a população e a soberania nacional, podendo gerar custos aos cofres públicos, com indenizações e gastos assistenciais. Para a indústria farmacêutica, essa retirada não altera o potencial do Brasil no cenário mundial.
Por outro lado, Lais defende que existiam duas pautas que não foram contempladas. Uma é a redução do prazo de acesso a medicamentos pós-estudo. O Conep defende que deveria continuar com um prazo indeterminado, porque pode acabar deixando a população desassistida ou onerando o SUS.
“Quando nos colocamos em risco, como a participação de pesquisa, estamos colaborando com uma indústria que irá desenvolver um produto. Não sabemos se vai ser bom, inócuo ou ruim. Pelos princípios da justiça e da reciprocidade, tenho direito de usufruir desse remédio. Se coloquei minha vida à disposição, por que não receber medicamentos ao longo da vida? E se formos falar de doenças raras, quanto tempo é esse período vitalício?”, analisa a coordenadora.
Outra das pautas é a discussão sobre a fragilidade das regras sobre a utilização de material biológico em pesquisas, que Bonilha aponta que deveria trazer mais segurança aos cidadãos brasileiros que participam da pesquisa. Ela afirma que se o texto não houvesse tramitado em urgência, seria possível discuti-los nas comissões.
“Não temos tanta governabilidade. O que pudemos debater e discutir, e fazer convencimento por meio da argumentação, fizemos. Não evitamos nenhum esforço, trabalhamos muito até hoje para tentar chegar ao melhor texto, no sentido de redução de danos em algumas situações. Fiquei positivamente surpresa com os avanços que conseguimos no Senado, porque não conseguimos nenhum avanço na Câmara”, afirma a coordenadora do Conep.
Associação de pacientes avalia novas regras para pesquisas clínicas
O Instituto Vencer o Câncer (IVOC) afirma que o texto substitutivo aprovado pode representar um passo importante em direção à modernização das normas de pesquisas clínicas no Brasil e que irá acompanhar as mudanças que devem impactar a vida dos pacientes do câncer, um dos principais grupos que podem ter acessos a novos tratamentos através dos estudos desenvolvidos no país.
“A legislação atualizada pode significar um marco na agilização e na eficiência dos estudos clínicos no país, trazendo benefícios para os pacientes e para o tratamento oncológico, desde que as modificações continuem a proteger os direitos e a segurança dos participantes dos estudos”, afirma a Ana Maria Drummond, diretora de desenvolvimento institucional do Instituto.
A entidade conta com um projeto de estruturação de centros de pesquisas de oncologia nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, buscando melhorar a distribuição dos estudos clínicos no Brasil. Atualmente, são 6 centros estabelecidos, mas a meta do IVOC é atingir a marca de 20 centros até o final de 2024.
Os centros são implementados em hospitais do SUS ou filantrópicos e envolvem a capacitação da equipe, apoio na infraestrutura, manutenção, criação de rede entre os centros para troca de experiências, além do trabalho de recrutamento de novos estudos e pacientes.
Na avaliação de Drummond, o projeto de lei busca encontrar um equilíbrio entre a proteção dos participantes e o progresso científico. Por isso, o Instituto defende que haja o fortalecimento de uma governança que possa garantir, segundo a diretora, “o melhor para o paciente e manter uma produção científica viável e segura no país”.
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado