Alterações podem ser um biomarcador de risco da doença degenerativa, segundo estudos. Um deles identificou que baixo processamento dos estímulos pode antecipar em 12 anos os sintomas cognitivos
Por Correio Braziliense
Os olhos podem revelar, com até 12 anos de antecedência, alterações cerebrais associadas ao risco de demência. Publicado na revista Scientific Reports, um estudo da Universidade de Loughborough, no Reino Unido, soma-se a novas evidências de que a perda da visão é um importante marcador da doença neurodegenerativa, que deve afetar 131,5 milhões de pessoas globalmente nos próximos 30 anos, segundo a Organização Mundial da saúde (OMS).
No artigo inglês, os pesquisadores usaram dados de mais de 8 mil adultos saudáveis que participaram de um estudo epidemiológico de Norfolk. Os voluntários fizeram testes de sensibilidade visual, que avaliam a velocidade do processamento visual e a reação da pessoa diante do estímulo. Eles deveriam pressionar a barra de espaço do teclado quando vissem um triângulo se formando em um conjunto de pontos em movimento, na tela.
Ahmet Begde, pesquisador de doutorado da Universidade de Loughborough e um dos autores do estudo, explica que a sensibilidade visual é a capacidade de detectar e processar informações visuais com precisão e eficiência. A perda da habilidade pode levar à dificuldade de reconhecer objetos e rostos, de ler ou de navegar no ambiente. Segundo Begde, esse parâmetro foi escolhido como preditor de demência porque estudos anteriores associaram a perda de visão, mesmo inicial, ao problema neurodegenerativo. “Isso sugere que avaliar as habilidades de processamento visual pode ser uma ferramenta valiosa na avaliação de risco de demência.”
Teste
Na pesquisa, os cientistas compararam dados de 2006 a 2019, considerando estatísticas hospitalares, certidões de óbito e informações de saúde mental dos participantes. Outros fatores de risco, como diabetes, depressão e perda auditiva, foram considerados. Entre aqueles que, no início do estudo, saíram-se pior nos testes de sensibilidade visual, 42% desenvolveram demência ao longo do acompanhamento.
Embora a pesquisa não estabeleça relação de causa e efeito, Eef Hogervorst, diretor de Pesquisa de Demência na Universidade de Loughborough e principal autor do estudo, destaca que a metodologia utilizada, aliada a descobertas anteriores, aponta o potencial da perda visual como biomarcador do risco de demência. “Descobrimos que uma pontuação baixa nos testes pode indicar o risco em média 12 anos antes do diagnóstico. Nosso objetivo é explorar o potencial de combinar avaliações de sensibilidade visual com outros testes cognitivos e neuropsicológicos para melhorar a precisão da previsão de risco de demência”, explicou, em nota.
Especialista em catarata, o oftalmologista Kim Osaki, diretor da Oftalmed, em Brasília, explica que, embora ainda seja necessário pesquisar mais a interação entre perda da visão e risco de Alzheimer, existem algumas pistas que podem explicar a associação. “A visão é um dos mais importantes fatores para o paciente se manter ativo”, diz. Uma pessoa que perde progressivamente a sensibilidade visual tende a se isolar mais e ter menos estímulos, importantes para o funcionamento da mente.
Osaki cita outro estudo recente, publicado na revista Jama, segundo o qual pacientes que operam a catarata têm 30% menos risco de desenvolver demência. “O rastreio precoce da catarata pode reduzir os casos de demência; em termos de políticas públicas, pode diminuir o fardo do Alzheimer na saúde”, acredita. A pesquisa foi realizada na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, com dados de 3 mil pessoas acima de 71 anos.
Alterações
Além do isolamento social e da redução de estímulos sensoriais, pesquisadores do Centro Médico Cedars-Sinai, nos Estados Unidos, estudam como alterações na retina camada de tecido na parte posterior do olho onde a informação visual se origina, correspondem às mudanças cerebrais e cognitivas em pacientes com Alzheimer. A pesquisa foi publicada na revista Acta Neuropathologica.
Os pesquisadores analisaram amostras de tecido retiniano e cerebral coletadas ao longo de 14 anos de 86 doadores humanos com doença de Alzheimer e comprometimento cognitivo leve. O material foi comparado ao de pessoas com função cognitiva normal. Então, os cientistas estudaram as características físicas da retina dos indivíduos com neurodegeneração, medindo e mapeando marcadores de inflamação, além de avaliar proteínas presentes nos olhos e nos cérebros dos pacientes.
Entre as descobertas, está uma superabundância de uma proteína chamada beta-amiolide em células cerebrais que fazem a ponte entre a entrada do estímulo visual na retina e o nervo óptico. Já se sabe há muitos anos que, no Alzheimer, a substância se aglomera, formando placas que interrompem as funções cerebrais.
No cérebro saudável, células chamadas microglias fazem a limpeza das proteínas beta-amiloide. Porém, os pesquisadores de Cedars-Sinais descobriram que, nos pacientes com a doença neurodegenerativa, havia até menos 80% estruturas do tipo, tanto na retina quanto nos tecidos cerebrais. Além disso, foram identificadas moléculas específicas e vias biológicas responsável pela inflamação e morte tecidual nos dois órgãos.
“Essas mudanças na retina se correlacionam com mudanças em partes do cérebro chamadas córtices entorrinal e temporal, um centro de memória, navegação e percepção do tempo”, disse, em nota, Maya Mamaoui- Koronyo, professora de Neurocirurgia, Neurologia e Ciências Biomédicas no Cedars-Sinai e autora sênior do estudo. “Essas descobertas podem eventualmente levar ao desenvolvimento de técnicas de imagem que nos permitam diagnosticar a doença de Alzheimer mais cedo e com mais precisão e monitorar sua progressão de forma não invasiva, olhando através do olho.”
Palavra de especialista // Alterações progressivas
As doenças do sistema nervoso central estão relacionadas também com uma perda visual progressiva, com alteração da sensibilidade da visão para algumas situações. Como isso é muito tênue, muitas das vezes passa desapercebido pelos familiares e pelo próprio paciente, pois você pode ter alterações de cores e uma sensibilidade maior ao ofuscamento, mas, no dia-a-dia, a visão continua boa — o que ele está perdendo são algumas sensibilidades e para, isso, é preciso fazer alguns testes mais apropriados. Esses testes mostrarão se o paciente está tendo uma alteração progressiva de doenças neurológicas, porque o olho é uma extensão do sistema nervoso central. Então, as doenças que afetam o sistema nervoso central também acabam afetando a qualidade visual — nem sempre a quantidade de visão. Nós precisamos estar atentos e por isso que é muito importante fazer avaliações oftalmológicas frequentes e, dependendo do resultado, o médico pode solicitar alguns exames complementares para poder acompanhar adequadamente esse paciente.
Núbia Vanessa, oftalmologista do CBV-Hospital de Olhos
Foto: Getty Images/Divulgação