Gestores falam de forma discreta sobre integração de dados e interoperabilidade com saúde suplementar, mas integração evolui dentro do SUS
Por Futuro da Saúde
O debate sobre integração de dados e interoperabilidade na saúde tem ganhado cada vez mais força e foi tema de um dos principais painéis do Congresso Nacional de Hospitais Privados 2023 (Conahp), que ocorreu entre os dias 18 e 19 de outubro, em São Paulo, SP. O evento contou com representantes da saúde suplementar e do Governo Federal, que trouxeram as perspectivas sobre os caminhos para a adoção de um prontuário único.
Com presença de Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, e de Arthur Chioro, ex-ministro e atual presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), o painel fez um balanço sobre onde o SUS se encontra nesse tema, os planos até 2024 e as dificuldades para alcançar a integração dos dados no âmbito público.
Já para a interoperabilidade com a saúde privada, os gestores se limitaram a dizer que o caminho internamente na saúde pública já é longo e requer grandes esforços. Contudo, os laboratórios clínicos privados já estão sendo ligados à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), plataforma do Ministério para fazer essa troca de informações. Junto ao setor público, 70,5 milhões de exames já foram incluídos no sistema.
“Falamos de 2,8 bilhões de atendimentos por ano no SUS, com 70% da população dependente desse sistema, e a interface com a saúde suplementar envolve uma complexidade. Temos uma série de desafios em um sistema que cresceu igual o SUS, com 35 anos de existência e mais de 400 sistemas que cresceram de forma fragmentada. É muito difícil, nós não podemos nem abrir mão desses sistemas e de todas as bases históricas de dados, mas também pensar em uma integração é um desafio praticamente impossível”, lamentou Haddad.
No futuro, a ideia é que através de aplicativos, como o ConecteSUS, o cidadão possa ter acesso aos seus dados em saúde, como já acontece com as vacinas, por exemplo. Mas o caminho é gradual, com pequenos avanços que muitas vezes soam imperceptíveis, como a padronização dos dados que está sendo trabalhada pela Secretaria de Informação e Saúde Digital neste momento.
Paralelamente, a pasta vem atuando para integrar os dados do Aplicativo de Gestão para Hospitais Universitários (AGHU), sistema utilizado em 41 hospitais que conta com dados de 25 milhões de pacientes, além de outros 25 serviços de saúde, à RNDS. A expectativa é que seja concluído em 2024,
“Estamos preparando a internalização do AGHU no DataSUS. Estamos no momento de conduzir essa internalização agora, trabalhando com aspectos de tecnologia da informação e dos profissionais que têm que estar envolvidos nesse processo para fazer a interoperabilidade com a RNDS, antes de escalar. Precisamos preparar a casa para abrir de forma mais ampla”, afirmou a secretária.
Importância e dificuldade da integração de dados
A integração e a interoperabilidade de dados em saúde é vista como importante ferramenta para reduzir custos com assistência, desperdício de recursos, diminuir erros médicos e colaborar com a saúde da população. Ainda, é essencial para a construção e adequação de políticas públicas, assim como a utilização por gestores públicos e pesquisadores.
O avanço da telessaúde no SUS também tem sido condicionada a uma melhor gestão dos dados e digitalização de forma integral. De acordo com Carlos Pedrotti, presidente da Saúde Digital Brasil, entidade que representa os prestadores de telemedicina no país, afirmou durante o painel que é preciso “dispor de mecanismos que eliminem disperdícios em filas, deslocamento e garantam essa integração e controle da jornada do paciente, porque só assim teremos objetividade, acesso à informação de forma segura e conseguir trabalhar para reduzir os desperdícios na cadeia e garantir o acesso ao nível adequado de atenção à saúde”.
Contudo, em um país de dimensões continentais como o Brasil, uma população de 203 milhões de pessoas e uma transição digital que chegou tardiamente, o desafio para fazer com que os sistemas se conversem e dividam as informações é maior. Com a divisão tripartite do SUS, com diferentes sistemas tecnológicos sendo utilizados, o caminho é complexo – mas não impossível.
“A possibilidade de visualização dos dados, apropriação pelos pacientes e o uso de inteligência artificial requer muito mais do que juntar todas as informações em uma certa base de dados. Sem fazer de fato uma integração, e acima de tudo interoperabilizar essas informações, ou seja, garantir a troca de dados e a comunicação entre os sistemas de equipamentos, jamais enfrentaremos essa brutal fragmentação que do sistema. Não é entre o sistema público e sistema privado, é no interior de cada um e de cada serviço”, analisa o ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro.
Por isso, é preciso elencar objetivos e informações que serão compartilhadas, já que o grande volume de dados torna o processo de integrar o sistema como um todo complexo e inviável, de acordo com especialistas sobre o tema, principalmente em relação à segurança e proteção, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
“A proteção de dados no setor de saúde ganha relevância em vários atores. Você tem os profissionais de saúde, desenvolvedores das plataformas utilizadas pelas instalações hospitalares, quem trabalha com a manutenção dessas plataformas, gestão dos bancos de dados onde ficarão armazenados, os aspectos de compartilhamento de gestão e acesso de prontuários eletrônicos. Os desafios na saúde são grandes”, explicou Arthur Sabbat, diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que também esteve presente no painel do Conahp.
Os caminhos para o SUS
Além dos exames laboratoriais, 1,7 bilhão de registros de vacinas, 15,7 milhões de autorizações de internações hospitalares e 20,3 milhões de autorizações de procedimentos ambulatoriais (APAC) já estão ligados à RNDS. Por outro lado, a Atenção Primária à Saúde é uma das áreas que precisam avançar mais, com menos de 200 mil registros de atendimentos clínicos (RAC) integrados.
“Muitos laboratórios já estão cadastrados e os números que a gente fornece hoje são de laboratórios também privados. Ainda não estamos com essa interoperabilidade estabelecida em todo sistema, está em processo. Na média e alta complexidade dependemos da questão do prontuário, vamos conseguir avançar quando esse processo do AGHU estiver mais adiantado”, explicou Ana Estela Haddad.
Existem dois processos simultâneos ocorrendo para avançar nessa área. O primeiro é a integração do AGHU à RNDS. O outro, é a parceria da Ebserh com o Ministério da Saúde para levar o prontuário eletrônico a todos hospitais do SUS, meta ambiciosa mas que tem sido vista como uma das principais formas de integrar os dados na média e alta complexidade da saúde pública.
Em julho, os órgãos anunciaram a disponibilidade do sistema para todos os hospitais interessados, com apoio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) para que as instâncias estaduais façam adesão. Além da possibilidade de integrar dados, os gestores têm a vantagem do AGHU ser gratuito, reduzindo custos com sistemas.
Chioro também aponta outros caminhos que a Ebserh tem trilhado para contribuir com a interoperabilidade: “Fizemos há cerca de 3 meses o primeiro movimento de integração de fato com outras bases de informação. Fizemos um acordo com a Secretaria Municipal de Saúde do Recife, utilizando um aplicativo muito inovador chamado iPES para interoperabilidade, desenvolvido pela Fundação Estatal da Saúde da Família pelo Consórcio do Nordeste. Com base nisso, o nosso Hospital Universitário do Recife integra as bases de dados com todo sistema de informação da secretaria municipal”.
Além disso, o AGHU tem o seu “ConecteSUS” próprio, chamado HU Digital. Atualmente, já é possível que pacientes acessem atestados, relatórios médicos e liberação de exame em tempo real. Alertas aos cidadãos e acesso às prescrições estão em fase de implementação, enquanto o teleatendimento e acesso à resultados de exames deverão ser implementados na plataforma até o final do ano.
“A partir do momento que abrimos nosso prontuário eletrônico, estamos chamando as empresas públicas, secretarias municipais e estaduais, universidades, institutos e aqueles que têm capacidade para participar de uma comunidade de desenvolvimento do AGHU, para conseguirmos alavancar o processo”, explica o presidente da Ebserh.
A Ebserh ainda planeja concluir a certificação junto à Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS) em 2024, que garante que o prontuário eletrônico do AGHU foi avaliado e atestado em aspectos de qualidade, segurança e privacidade.
Avançando lentamente
“Hoje nós estamos no caminho. Já temos o conjunto mínimo de dados, o modelo informacional e computacional para alguns serviços, e ainda estamos em diferentes graus de processos para outros. Vacinas a gente já conseguiu correr com a série histórica”, explicou a secretária Ana Estela Haddad.
A criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital tem sido vista como o maior passo do Governo Federal em prol da interoperabilidade de dados. Contudo, o processo é gradual e não ocorrerá na velocidade que o setor gostaria. Por isso, falar em ligação com a saúde suplementar ainda parece distante.
Haddad afirma que não há previsão para que o Ministério da Saúde crie uma legislação sobre os padrões que devem ser seguidos, aos moldes como ocorre em outras regiões do mundo, mas que a pasta vem trabalhando no sentido de criar tais padrões. Esse, inclusive, é visto como um aspecto que pode travar a interoperabilidade entre os sistemas, já que não há previsão legal para que a saúde privada seja integrada e siga as sugestões do Ministério.
Por isso, o diálogo com a saúde suplementar é tida como essencial para avançar no tema, assim como ocorreu no Congresso da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp). A participação da ministra Nísia Trindade, na abertura do evento, foi considerada um marco para o fortalecimento das relações em prol de um sistema único de saúde de fato.
“Nossos desafios não são tecnológicos. Eles são hoje os recursos disponíveis claramente superáveis. São desafiadores, claro, mas estão aí e podem ser superados. Nosso grande problema ainda continua sendo uma não introjeção para valer, do quanto é importante fazer a integração dos dados no cotidiano”, avalia Arthur Chioro.
O presidente da Ebserh lista 6 passos essenciais para avançar na interoperabilidade. São eles: formular casos de uso concreto, identificar quais são as bases de dados disponíveis, implantar indicadores, definir os documentos clínicos padronizados, formalizar os padrões tecnológicos de troca de dados e estabelecer padrões semânticos.
A Secretaria de Informação e Saúde Digital tem trabalhado para construir o Índice de Maturidade Digital em Saúde, que de acordo com a pasta será o instrumento que fornecerá subsídios para a transformação digital na saúde pública no país. A ideia é que utilizando as informações presentes, os gestores públicos façam uma avaliação e proponham planos de ação para desenvolver a transformação digital no âmbito do SUS. Ana Estela espera contar com a participação da saúde suplementar para “pensar esse processo de uma forma única, ou pelo menos integrada e articulada para toda a saúde do Brasil”.
Foto: Reprodução