Com essa terapia, pacientes que lutam contra o câncer há anos apresentam resultados promissores
Por Futuro da Saúde
O ano era 2019; o mês, outubro. Em toda a imprensa, uma notícia se destacava. Um funcionário público aposentado de 63 anos de Belo Horizonte, paciente terminal de câncer, ganhou uma nova chance de viver. Após passar por quimioterapia e radioterapia sem sucesso, foi a primeira pessoa da América Latina a ser tratada com CAR-T Cells, o que resultou na remissão total da doença.
CAR-T Cell significa “célula T com receptor de antígeno quimérico”. Trata-se de um tratamento que usa células geneticamente modificadas.
As células T têm um papel importante no nosso sistema de defesa. Elas conseguem proteger o organismo humano contra infecções e até contra células cancerígenas. Porém, podem perder a capacidade de identificação dos tumores, deixando-os crescerem. Assim, a modificação das células T em laboratório por pesquisadores devolvem a elas essa habilidade. Dessa forma, elas são reprogramadas e conseguem voltar a destruir células do câncer.
A técnica é recente. O Food and Drug Administration (FDA), órgão que regula medicamentos nos Estados Unidos, liberou o uso comercial deste tipo de terapia por lá apenas em 2018. Até agora, os resultados são promissores.
No caso do aposentado brasileiro, o paciente era portador de um linfoma agressivo em estágio avançado. Ele lutava contra o câncer fazia dois anos, tendo sido submetido anteriormente a quatro linhas de tratamento. Todas sem sucesso. Por esse motivo, foi levado ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), onde os médicos conseguiram autorização para tentar a nova terapia. A tecnologia foi desenvolvida no Centro de Terapia Celular (CTC), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), sediada na USP.
CAR-T Cells no tratamento oncológico
O sistema imunológico do corpo humano é composto principalmente por linfócitos B, que produzem os anticorpos, e por linfócitos T, que atacam invasores. Em alguns casos, o câncer é causado por linfócitos B doentes.
Na terapia com CAR-T Cells, os linfócitos T são alterados em laboratório. O objetivo é que eles identifiquem especificamente as células cancerígenas. Para isso, um receptor artificial é adicionado, chamado receptor de antígeno quimérico, cuja sigla em inglês é CAR.
Como tipos diferentes de tumores podem ter diferentes antígenos, os pesquisadores desenvolvem um receptor para cada antígeno. Ou seja, é um tratamento personalizado para cada tipo de câncer ou patologia. Dessa forma, as células T do próprio paciente são coletadas pelo sangue e utilizadas para produção das células CAR-T.
Todo o processo pode demorar semanas, desde a coleta até a alteração genética das células em laboratório, com a inserção de um novo gene nelas. Nesse gene, há uma proteína que dentro do organismo humano irá direcionar as células T para atacar as células que têm aquele antígeno específico na superfície. Ou seja, as células cancerígenas.
Para aumentar as chances de sucesso do tratamento, os médicos podem prescrever quimioterapia para ser realizada antes da nova técnica. A sessão irá fazer com que o número de outras células do sistema imunológico diminuam, fazendo assim com que a terapia com CAR-T Cells tenha mais chances de eficácia. Por fim, à medida que as células geneticamente modificadas se ligam aos tumores, elas aumentam em número, exterminando as células cancerígenas.
Efeitos colaterais
De acordo com os cientistas, o novo tratamento pode causar efeitos colaterais sérios em alguns pacientes dias após a inserção das células T modificadas. Eles podem apresentar diminuição da pressão arterial, febre, confusão mental, convulsões, dores de cabeça, infecções e até mesmo enfraquecimento do sistema imunológico. Por isso, é importante que os pacientes continuem em contato com a equipe médica que o atendeu mesmo após a alta médica.
A norma sobre o registro sanitário para produtos de terapias celulares, incluindo aquelas com CAR-T Cells, foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro de 2020. A normativa indica requisitos mínimos, condições de dispensa em casos específicos e definição de prazos para análise e priorização para registro produtos que têm como base as células e genes humanos, como sangue, tecidos, medicamentos e serviços de saúde.
CAR-T Cells além da oncologia
Segundo especialistas, as CAR-T Cells poderão tratar diversos tipos de doenças crônicas no futuro. Além dos oncológicos, os pacientes que mais poderão ser beneficiados pela tecnologia serão aqueles que tiverem doenças autoimunes ou infecciosas.
Doenças infecciosas
A AIDS é a doença infecciosa que mais recebe atenção dos cientistas nos estudos para tratamento com CAR-T Cells. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer, desde os anos 1990 há tentativas de cura do HIV com células geneticamente modificadas. Com a técnica sendo cada vez mais aprimorada, os cientistas seguem tentando novas estratégias para tornar a célula CAR-T imune à infecção.
Um dos problemas do HIV é que a carga viral nas células é alta. Isso faz com que os pacientes precisem tomar um coquetel de remédios por toda a vida. Em 2019, uma pesquisa com células CAR-T conseguiu reduzir pela metade a quantidade de vírus latente em dois dias. Apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer, já se percebem avanços.
As infecções crônicas pelos vírus da hepatite B e C também podem estar com os dias contados. Pesquisadores já desenvolveram CAR-T Cells específicas para acabar com o problema. Os estudos atualmente estão em fase pré-clínica.
Doenças autoimunes
As células CAR-T também podem ser usadas na tentativa de cura de doenças autoimunes. Há testes em andamento contra o lúpus, que pode afetar diversos órgãos e tecidos, e miastenia gravis, que leva à fraqueza muscular progressiva e incapacitante.
As células B também fazem parte do sistema imunológico. Entretanto, em algumas doenças autoimunes como lúpus, esses linfócitos podem liberar anticorpos que danificam o tecido do corpo e provocam ataques de células T nos tecidos.
Em 2019, pesquisadores norte-americanos conseguiram eliminar células B do sistema imunológico para curar camundongos que sofriam com lúpus. A terapia com CAR-T Cells conseguiu destruir as células B dos animais, detectando um marcador de proteína em sua superfície. Cientistas ainda tentam descobrir por que a técnica não funcionou para 15 dos 41 camundongos estudados. Porém, no futuro esse tipo de terapia pode representar a cura do lúpus.
Perspectivas para o futuro
A área de terapia gênica teve um grande crescimento nos últimos anos. O resultado disso são alguns produtos já aprovados e disponíveis no mercado. Ou seja, já se evoluiu da fase de descoberta para a comercialização.
De acordo com especialistas, o mercado global de terapias com CAR-T Cells deve aumentar ainda mais até 2025. Esse crescimento pode estar ligado ao uso de vetores não virais nas terapias gênicas. Um artigo publicado na revista Nature Biotechnology analisa o cenário de patentes com foco nos vetores que não utilizam vírus. Em breve, a ideia é testá-los nas terapias com CAR-T Cells. Isso poderia significar o desenvolvimento de técnicas mais seguras na área.
Um dos principais desafios da terapia é o custo. Nos Estados Unidos, a produção das células e as despesas hospitalares podem custar juntas mais de US$ 1 milhão de dólares aos pacientes. Entretanto, com a tecnologia sendo desenvolvida também no Brasil, com o auxílio de universidades e órgãos públicos, o tratamento pode custar bem menos do que isso. Com o protocolo de produção de CAR-T Cells aberto, outros laboratórios também poderão reproduzir a técnica. Isso resultará no tratamento de um número maior de pacientes.
Por fim, a terapia com CAR-T Cells mudou o paradigma para doenças oncológicas. Pode também causar o mesmo efeito em doenças crônicas e autoimunes. Se essas previsões se concretizarem, poderá haver redução da mortalidade por esses tipos de patologias. Consequentemente, pacientes e familiares terão mais qualidade de vida.
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