Por Medicina S/A
Pesquisas lideradas pelo professor Marcelo Urbano Ferreira, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB-USP), revelam que, em contextos de baixa transmissão, a maioria das infecções por malária em áreas urbanas da Amazônia pode ser assintomática e não detectada pelos exames de rotina. A conclusão, fundamentada em estudos de base populacional realizados em Mâncio Lima e Vila Assis Brasil, no Acre — uma das regiões com maior incidência proporcional da doença no país —, tem implicações diretas para as estratégias de controle e eliminação da malária no Brasil.
A investigação demonstrou que, à medida que a transmissão da malária diminui, torna-se cada vez mais difícil detectar os parasitas causadores da doença por meio da microscopia — principal método diagnóstico utilizado na rede pública. “A redução da transmissão não significa o fim do problema. Pelo contrário, ela pode mascarar um reservatório oculto de infecções que continua sustentando a transmissão local”, afirma Ferreira.
Mais de 2.700 moradores da área urbana de Mâncio Lima foram acompanhados por meio de rodadas sucessivas de coleta de sangue ao longo de vários anos. As amostras foram testadas por microscopia e por métodos moleculares altamente sensíveis. Os testes de PCR detectaram até dez vezes mais infecções do que a microscopia tradicional. Além disso, mais de 90% dessas infecções eram assintomáticas — ou seja, os portadores não apresentavam febre, calafrios ou dores de cabeça, sintomas que normalmente acionam o diagnóstico clínico.
Diante desse cenário, o município passou a aplicar, ainda que de forma limitada a um período, a chamada busca ativa-reativa — estratégia recomendada pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), mas ainda pouco implementada no Brasil. A metodologia consiste em visitar as residências de pessoas diagnosticadas com malária e testar seus familiares e vizinhos, mesmo que estejam assintomáticos. A abordagem esteve associada à redução sustentada dos casos notificados no município durante o período do estudo, embora outras variáveis também tenham contribuído para esse resultado.
Outro achado relevante é que, mesmo com densidades parasitárias semelhantes, a chance de um exame microscópico identificar o parasita caiu consideravelmente ao longo dos anos. Essa perda de sensibilidade torna mais difícil detectar e tratar os casos de forma eficaz. Os pesquisadores também mapearam a diversidade genética dos parasitas e identificaram que as linhagens circulam livremente entre áreas urbanas e rurais, o que pode representar um risco de manutenção ou reintrodução da doença em zonas urbanizadas mesmo após quedas expressivas nos casos clínicos.
No segundo estudo, focado na comunidade de Vila Assis Brasil, os pesquisadores observaram que, mesmo após a aplicação de larvicidas que reduziram a densidade de mosquitos transmissores, os índices de infecção detectados por métodos moleculares caíram menos do que os casos clínicos. Isso indica que a população passou a tolerar cargas mais altas de parasitas sem desenvolver sintomas, criando um desafio adicional para a vigilância baseada em sintomas.
Já um terceiro estudo, atualmente em andamento, aprofunda a compreensão de por que a malária persiste mesmo em contextos de baixa transmissão. A pesquisa mostra que cerca de 20% da população concentra até 80% das infecções por Plasmodium vivax, um padrão conhecido como princípio de Pareto. Esses indivíduos, mais suscetíveis por fatores genéticos, comportamentais ou imunológicos, tendem a ter recaídas frequentes e a desenvolver uma imunidade clínica que suprime os sintomas, mas não impede a infecção. Como resultado, tornam-se portadores assintomáticos que mantêm a transmissão viva na comunidade — mesmo quando os casos clínicos diminuem. A identificação e o monitoramento desses “superdisseminadores” são considerados cruciais para estratégias eficazes de eliminação da malária.
Esses resultados reforçam a necessidade de incorporar tecnologias moleculares no diagnóstico da malária, sobretudo em contextos de baixa transmissão, e de redesenhar estratégias de vigilância ativa que não dependam apenas da manifestação clínica. “Se o Brasil quiser alcançar a meta de eliminação da malária até 2035, será preciso investir em novos métodos de diagnóstico e em ações direcionadas a populações mais vulneráveis e móveis, como trabalhadores rurais e moradores de áreas periurbanas”, destaca Ferreira.
Os estudos fazem parte do projeto temático “Estratégias inovadoras para vigilância, controle e eliminação da malária na Amazônia Brasileira”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para o período de 2023 a 2028, com a participação de instituições brasileiras e internacionais.
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