Britânico conta como lidou com perspectiva de morrer cedo e peso de manter segredo fora de casa, e como conseguiu ‘virar o jogo’ após problemas na escola, abuso de drogas e dificuldades em relacionamentos
Por BBC
Matt Merry não consegue lembrar as palavras exatas que sua mãe usou para dizer que ele era HIV positivo. Ele só lembra de não saber como reagir – não no começo, não na frente da mãe. Ela o sentou à mesa no quarto dos fundos da casa onde viviam na cidade de Rugby, na Inglaterra, para dar a notícia. Matt tinha 12 anos de idade.
Sua mãe explicou que ele tinha o vírus havia quatro anos.
Foi contaminado com injeções que tomou durante um tratamento para hemofilia, doença que dificulta a coagulação do sangue e causa hemorragias difíceis de controlar.
Era 1986, auge da epidemia de Aids, quando um diagnóstico de HIV equivalia a uma sentença de morte.
Os médicos disseram aos pais dele que, a partir dos primeiros sinais de infecção, Matt provavelmente teria apenas dois anos de vida.
HIV e Aids estigmatizavam nos anos 80
Naquela noite, deitado na cama com as luzes apagadas, a dormência que havia sentido o dia inteiro começou a diminuir.
Ele começou a se dar conta da dimensão do que a mãe havia lhe contado.
Tudo o que conhecia sobre HIV e Aids eram imagens de TV de homens jovens de aparência esquelética, com os corpos cobertos de feridas, definhando em camas de hospital. Matt então começou a chorar.
“Daquele ponto em diante, pelo resto da minha adolescência, eu tive um cronômetro pairando sobre minha cabeça – e a qualquer momento alguém poderia apertar aquele botão e começar a contagem regressiva de dois anos até eu definhar e morrer”, diz ele.
Ele voltou às aulas carregando um segredo que não podia compartilhar com amigos, professores e, inicialmente, nem mesmo com o irmão mais novo.
Em 1986, o vírus HIV e a Aids eram objetos de um medo visceral e generalizado. Na mídia, a doença era amplamente associada a grupos como usuários de drogas e gays, que na época eram frequentemente estigmatizados. Não havia esclarecimento suficiente de como se dava a transmissão do vírus.
Matt ouviu falar de casas pichadas com “ESCÓRIA DA AIDS” e outros xingamentos quando se espalhou o rumor de que alguém que morava na área tinha a doença. Mas o pânico só aumentaria no ano seguinte, quando o governo lançou campanhas retratando a Aids como uma presença ameaçadora e mortal.
Silêncio, segredo e solidão
Olhando para trás, Matt acha que seus pais tomaram a decisão certa sobre manter o silêncio.
“Não era realmente uma opção deixar alguém saber”, diz ele.
Outros alunos o “alfinetavam” de vez em quando por ele ser hemofílico. E ele não consegue imaginar o que teria acontecido se o diagnóstico de HIV tivesse sido revelado.
Naquela época, notícias apontavam que milhares de pessoas haviam sido infectadas pelo HIV através de produtos sanguíneos contaminados, e Matt tinha ouvido falar de escolas de onde os pais haviam retirado seus filhos ao saberem que havia um hemofílico na classe.
Mas o fardo do segredo pesava profundamente. “É tão solitário passar por isso e enfrentar tudo sozinho – não poder falar com ninguém, não ser capaz de discutir isso.”
Nunca lhe foi oferecido algum aconselhamento profissional. Não havia psicólogos ou terapeutas para ajudá-lo a lidar com a questão.
“Eu poderia ter conversado com minha mãe, meu pai ou meu irmão – mas, isso era tão perturbador que não queria falar a respeito, porque sabia que acabaria chorando, então simplesmente me calei e segui em frente.”
Para seus amigos e colegas de classe, tudo parecia normal. Ninguém sabia o que se passava na cabeça dele. Mas Matt tinha que conviver com a certeza de que estaria morto aos 20 anos. Ele nunca poderia ter namorada, muito menos se casar ou ter filhos.
A família alimentava expectativas em relação a ele.
Os pais queriam que o filho se saísse bem na escola e fosse para a universidade. Mas depois que soube que era soropositivo Matt parou de se esforçar na escola.
Hepatite C aumenta escândalo no NHS
Posteriormente, ele descobriu que tinha sido infectado com hepatite C também, outra doença com alto grau de letalidade.
“Por que gastar todo esse tempo estudando e fazendo dever de casa quando não vou chegar a ter uma carreira?” raciocinou na época.
Sem se dar conta, Matt foi uma das vítimas do que tem sido chamado de o maior escândalo na história do NHS, o serviço de saúde pública do Reino Unido – que resultou na morte de pelo menos 2.883 hemofílicos nessa região, de acordo com ativistas.
Teme-se que dezenas de milhares de não-hemofílicos também possam ter sido infectados por meio de transfusões de sangue.
Ainda criança, ele havia sido diagnosticado com hemofilia grave, o que quer dizer que seu sangue demorava a coagular e que ele sangraria por mais tempo que outras crianças. Isso significava que os cortes em sua pele, por exemplo, demorariam mais para cicatrizar. Os sangramentos poderiam ser extremamente dolorosos e restringir sua mobilidade – o sangue encheria as cavidades de suas articulações, o que tornaria quase impossível movê-las.
Com esse quadro, brincadeiras como subir em árvores ou andar de bicicleta eram proibidas pelos pais dele.
A hemofilia também significava que Matt nunca poderia alcançar sua ambição de se tornar um piloto da RAF, a Força Aérea Real britânica.
Mas durante os anos 1970 e 80, um novo tratamento para hemofílicos ficou disponível, as injeções de proteínas chamadas “concentrados de fator” – normalmente o Fator VIII, considerado essencial para ajudar a coagular o sangue. Esses concentrados eram feitos a partir do plasma de sangue doado, e havia tanta demanda por eles que o NHS começou a importá-los do exterior, principalmente dos EUA.
Fator VIII, a traiçoeira esperança
Agora, em vez de ir ao hospital toda vez que sangrasse, Matt tinha um suprimento de Fator VIII em casa, que a mãe se encarregava de injetar nele – até que aprendeu a fazer isso sozinho.
Ele também ia a acampamentos de verão no norte do País de Gales com outros jovens hemofílicos, acompanhados por médicos equipados com suprimentos do Fator VIII – o que permitia que brincassem ao ar livre, já que, se caíssem e se machucassem, receberiam tratamento. Leia a reportagem completa.
Foto: Arquivo Pessoal/BBC