Áreas ligadas à percepção e ao movimento são as mais afetadas, mostra estudo com astronautas que participaram de missões com, em média, seis meses de duração. A descoberta poderá ser importante no planejamento de voos turísticos
Por Correio Braziliense
O espaço nunca esteve tão próximo do homem. Além dos planos de voos tripulados para Marte, a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) pretende abrir a Estação Espacial Internacional ao turismo, o que tem incentivado estudos mais aprofundados sobre a fisiologia do ser humano em um ambiente de microgravidade. Um estudo publicado na revista Frontiers in Physiology mostra que as viagens além-Terra impactam o cérebro significativamente, alterando a conectividade em regiões relacionadas à percepção e ao movimento.
Durante os voos para o espaço, os astronautas são continuamente expostos à falta de gravidade, o que requer adaptações e provoca mudanças no corpo. A vida em planetas e satélites colonizados — um futuro para a humanidade que muitos consideram provável — exigirá condições especiais para garantir a integridade do organismo, diz o estudo, liderado por cientistas da Universidade Nacional de Pesquisas, na Rússia. De acordo com eles, embora os efeitos da microgravidade nos ossos, nos músculos e no sistema vestibular (órgãos do ouvido interno que detectam movimento) sejam bem conhecidos, a maneira como o cérebro humano lida com essa condição extrema ainda precisa ser completamente esclarecida.
A equipe de pesquisadores russos utilizou ressonância magnética funcional para medir a conectividade cerebral em um grupo de 11 astronautas. O estudo descobriu que algumas áreas, como as dos córtices insular e parietal, trabalham de forma mais sincronizada com outras regiões do cérebro após o voo espacial. Por outro lado, a conectividade em outros locais, como o cerebelo e os núcleos vestibulares, diminui.
Ekaterina Pechenkova, cientista do Laboratório de Pesquisa Cognitiva da universidade e líder do estudo, conta que os exames nos astronautas foram feitos antes e depois de missões espaciais com duração média de seis meses. Os resultados foram comparados aos de voluntários saudáveis que permaneceram na Terra. De acordo com a pesquisadora, o objetivo do rastreamento foi identificar mudanças na conectividade entre áreas subjacentes às funções sensório-motoras, como o movimento e a percepção da posição do corpo.
“Descobrimos mudanças nas conexões cerebrais. Para compensar a falta de informação dos órgãos de equilíbrio, que não são capazes de fornecer informações confiáveis na microgravidade, o cérebro desenvolve um sistema auxiliar de controle somatossensorial, que depende menos do sistema vestibular e mais do feedback visual e tátil”, afirma. “Também observamos diminuição da conectividade entre o córtex e os núcleos vestibulares.”
Adaptações distintas
Na Terra, onde há gravidade, os núcleos vestibulares são responsáveis pelo processamento dos sinais enviados pelo sistema vestibular, que fica no ouvido interno. Mas no espaço, de acordo com os pesquisadores, o cérebro pode diminuir a atividade dessas estruturas para evitar informações conflitantes sobre o meio ambiente. Eles também descobriram que, após o voo espacial, as conexões do cerebelo e uma série de outras estruturas, particularmente as responsáveis pelo movimento, diminuem.
Por outro lado, a ressonância magnética mostrou conexões aumentadas entre o córtex insular nos hemisférios esquerdo e direito, bem como entre o córtex insular e outras áreas do cérebro. Os lóbulos insulares, entre outras coisas, são responsáveis pela integração de sinais provenientes de diferentes sistemas de sensores. Funções semelhantes são realizadas pela área do córtex parietal no giro supramarginal direito, que também demonstrou maior conectividade com outras áreas do cérebro após o voo.
“É um fato interessante que o aumento de conectividade entre o giro supramarginal direito e o córtex insular esquerdo foi maior entre os astronautas que passaram por um processo de adaptação inicial menos confortável na Estação Espacial (aqueles que relataram vertigem, ilusão de posição corporal etc.)”, afirma Pechenkova. Os pesquisadores acreditam que esse tipo de informação ajudará a entender melhor por que a adaptação às condições dos voos espaciais difere tanto de acordo com cada pessoa. “Isso contribuirá para o desenvolvimento de programas de treinamento individuais mais eficazes para os viajantes do espaço”, diz a cientista.
Para Donna Roberts, neurorradiologista da Universidade da Carolina do Sul que não participou desse estudo, ainda são necessárias muitas pesquisas antes de se garantir que voos espaciais, especialmente os turísticos, que serão feitos por pessoas sem o grande treinamento de um astronauta, se tornem possíveis. No início do ano, Roberts publicou um artigo na revista Jama Neurology relatando alterações no líquido cerebrespinhal de pessoas que permaneceram muito tempo no ambiente de microgravidade. “Não sabemos se os efeitos adversos no corpo continuam a progredir ou se estabilizam depois de um tempo. Precisamos saber se representam uma resposta adaptativa ou um processo patológico que precisa ser mitigado”, defende.
Foto: NASA/Divulgação