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O projeto brasileiro que transforma leite materno em pó

Cientistas criaram versão em pó do leite humano para minimizar o desabastecimento dos bancos e oferecer uma alternativa às fórmulas infantis

 

Por Saúde é Vital

 

Um projeto que pode auxiliar novas mamães a cumprirem a amamentação até pelo menos os 6 meses de vida é o vencedor do Prêmio Péter Murányi de 2020. Os ganhadores da 19ª edição são a nutricionista Vanessa Bueno Moreira Javera e o químico Jesuí Vergílio Visentainer, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), que descobriram como pegar o leite materno e transformá-lo em pó, sem perder nutrientes.

A iniciativa nasceu da dissertação de doutorado de Vanessa e foi feita em parceria com o Banco de Leite Humano do hospital da UEM. Com essa inovação, mulheres que não conseguem amamentar ou manter a prática após o fim da licença-maternidade ganham uma alternativa para suprir as necessidades de seu filho. De quebra, a estratégia auxilia a lidar com a demanda das UTIs neonatais.

“Vários estudos mostram a importância do aleitamento materno, principalmente para os recém-nascidos. Ele tem que ser feito de maneira exclusiva até os 6 meses de idade, mas no Brasil isso acontece com menos de 40% das crianças”, contextualiza a nutricionista.

Antes de explicar essa inovação e quais suas implicações em detalhes, é preciso entender o funcionamento da doação.

A doação do leite materno hoje

No Brasil, ela é regulamentada por uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para se tornar uma doadora, a mulher deve produzir mais que o necessário para o seu filho, estar saudável e se dispor a ordenhar e entregar o excedente a um Banco de Leite Humano (BLH).

O próximo passo é entrar em contato com o BLH mais próximo — no site da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) você encontra a lista de telefones e endereços de todos os postos do país. Eles realizam o cadastro e dão orientações sobre o procedimento. Neste link, ensinamos a fazer a coleta e o armazenamento.

Uma vez que chega ao banco, o leite é avaliado, classificado, pasteurizado e congelado. O líquido tem validade de seis meses e é direcionado às UTIs neonatais conforme a necessidade.

Só que todo o processo demanda muitos cuidados. “Depois de descongelar o leite pasteurizado, ele dura 24 horas. Se a gente, por exemplo, disponibilizar um frasco para uma UTI que só tenha dois bebês em um dia e eles consumirem 50 mililitros, o que sobra é desprezado”, revela Vanessa.

No Brasil, 45% dos recém-nascidos que precisam de leite doado não têm acesso a ele, de acordo com o Ministério da Saúde. O desperdício e o baixo número de doadoras contribuem para esse cenário.

No mais, o material coletado em casa é armazenado em recipientes de vidro — normalmente, são potes vazios de café solúvel ou maionese. No transporte, eles correm risco de quebrar, além de ocuparem um espaço significativo nos hospitais.

“O produto não pode ser levado para um banco que fique há mais de seis horas de distância da doadora. Se descongela, perde as propriedades e estraga”, complementa a especialista.

Como o leite vira pó

“Comecei a trabalhar no banco de leite da universidade para observar a rotina. Inicialmente, conversamos com os funcionários para ver qual a demanda. Então, notamos que podíamos ajudar com a versão em pó”, conta a nutricionista.

A equipe recorreu a duas máquinas diferentes: o spray dryer e o liofilizador. “As duas já existem e são comumente utilizadas na preparação de alimentos e medicamentos. Nós as adaptamos com uma metodologia específica para esse líquido”, informa a pesquisadora.

Na liofilização, o produto congelado é colocado em um equipamento que diminui ainda mais a temperatura, de maneira rápida. Assim, a pressão sobe, o que leva a água a passar do estado sólido para o gasoso — é a chamada sublimação. Daí, sobra somente a “farinha”, formada pelos componentes nutricionais.

Já na chamada secagem por spray drying, o gelo evapora por causa do calor gerado na máquina, não pela pressão. O resultado final é o mesmo e a validade chega a um ano.

“O processo de liofilização leva até 24 horas, enquanto o spray dryer demora de 15 a 30 minutos, dependendo do volume de leite”, acrescenta Vanessa.

Na hora do consumo, basta colocar o leite materno em pó e água morna filtrada em um recipiente. É do mesmo jeito que se faz com a versão comum, vendida nos mercados.

“Se você precisa dar 100 mililitros para o bebê e tem 10 gramas de pó, é só adicionar 90 mililitros de água”, exemplifica a nutricionista. Segundo os cientistas, todas as propriedades nutricionais são mantidas.

Por que o projeto ajudaria a melhorar o aleitamento materno
Há alguns motivos. Primeiro, o armazenamento nos bancos e nas UTIs neonatais fica mais fácil, o que minimiza desperdícios.

Só que não para por aí. Com as técnicas testadas, a mulher terá a possibilidade de ordenhar o seu leite, transformá-lo em pó sem que seja pasteurizado e dá-lo para seu próprio filho em momentos de necessidade, ou meses depois. No período em que estiver hospitalizado, ele conseguirá beber o que a própria mãe gerou.

Dito de outra maneira, o pequeno recebe o alimento vindo da progenitora, enquanto essa mesma mulher deixa de precisar do leite doado. E, claro, isso reduz a pressão sobre os BLHs.

A pesquisadora informa ainda que a versão em pó seria uma alternativa às fórmulas infantis para a parte da população feminina que volta a trabalhar e interrompe a amamentação exclusiva antes dos 2 anos de idade.

“Quando você compra uma lata no mercado, ela contém uma quantidade padrão de nutrientes. Já o leite materno sempre é modulado. A composição, a quantidade e a disponibilidade se adaptam às necessidades da criança”, justifica a expert. “Os gastos públicos com tratamentos de doença ao longo da vida vão diminuir. Há um retorno para o país”, finaliza Vanessa.

Ela e Visentainer, que coordenou a pesquisa, receberão a premiação de R$ 200 mil da Fundação Péter Murány. O valor será investido no desenvolvimento do projeto.

Até o momento, no entanto, essa nova estratégia está restrita ao Banco de Leite Humano do hospital da Universidade Estadual de Maringá. Para que a iniciativa seja expandida, barreiras regulatórias terão de ser ultrapassadas.

 

 

Foto: Bruno Marçal/SAÚDE é Vital

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