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Atenção primária à saúde: qual o cenário do atendimento pelo SUS?

Mudanças de programas do governo e dificuldades para a fixação de médicos estão entre os principais desafios da atenção primária no SUS.

Por Futuro da Saúde

A atenção primária à saúde (APS) é cada vez mais reconhecida como importante ferramenta na prevenção de doenças e no cuidado com a população, por ser considerada resolutiva em 85% dos casos. Já consagrada na saúde pública, começa a ser utilizada também na saúde suplementar, trabalhando para reduzir a sinistralidade e os custos das operadoras. Contudo, no Sistema Único de Saúde, o SUS, a área passa por dificuldades que passam pela mudança de programas de governo, falta de profissionais, infraestrutura e orçamento.

Com cerca de 29 bilhões de reais dedicados à atenção primária em 2022, 25% do orçamento do Ministério da Saúde, o trabalho é feito através das Unidades Básicas de Saúde (UBS), com diferentes programas do governo. O principal deles é a Estratégia Saúde da Família (ESF). Médicos, enfermeiros, agentes de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem compõem as equipes, que podem contar ainda com dentistas.

A meta do programa é atingir 72,31% da população brasileira até o final de 2023. Entretanto, alguns obstáculos podem dificultar esse alcance: a dificuldade de permanência de profissionais em áreas distantes das capitais e grandes centros urbanos, a reestruturação de programas do Governo e o financiamento aos municípios, considerado abaixo do necessário.

“Para grande parte da população, a APS é a única forma de acesso à saúde (hoje são mais de 160 milhões de pessoas com acesso à APS)”, explica Carinne Magnago, professora do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

Levantamento da demanda na atenção primária à saúde
De acordo com levantamento do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo (Cosems/SP), há um déficit de 2,2 mil médicos nas UBS do estado. “A falta de médicos disponibilizados pelo Ministério faz com que os gestores municipais tenham que ampliar a remuneração dos profissionais para conseguir contratar, o que sobrecarrega os gastos dos municípios, que já investem mais de 25% de seus orçamentos em saúde”, afirma o Cosems/SP.

Apesar de não ter um número oficial da falta de profissionais de saúde no Brasil, Magnago afirma que as políticas voltadas à atenção primária têm sofrido cortes nos últimos anos. “O que já sabemos é que, nos últimos anos, a cobertura pela ESF e pela APS não se ampliou de maneira significativa, houve aumento da taxa de mortalidade infantil, desabastecimento de insumos e medicamentos essenciais, ressurgimento e/ou amplificação de casos de doenças como o sarampo, dengue e febre amarela, e precariedade na contratação de trabalhadores na APS”, alerta.

O risco de o orçamento federal para saúde ser no próximo ano o menor nos últimos 10 anos, caso seja aprovado pelo Congresso Nacional, pode agravar ainda mais essa situação. Previsto para ser de R$ 146,4 bilhões, a atenção primária deve ser uma das mais afetadas, ao lado da assistência farmacêutica e outros programas, como o de HIV.

“A base da nossa principal dificuldade é justamente a gente não ter uma política clara de valorização da atenção primária. Por mais que ao longo do tempo a gente tenha avançado nisso, com a implementação e avanço da Estratégia Saúde da Família por todo o país, ainda não temos isso como uma clara política de saúde. Temos um movimento de pouca valorização e, inclusive, alguns movimentos de esvaziamento da política ou queda no financiamento, como aconteceu há 2 anos”, alerta Fabiano Guimarães, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

Concentração de profissionais
O Brasil possui 603.432 médicos, de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), cerca de 3 profissionais a cada mil habitantes. “O grande problema que enfrentamos, para todas as categorias profissionais, é a concentração desses profissionais no Centro-Sul do país, nas capitais e em municípios mais desenvolvidos (que geralmente se localizam nas regiões metropolitanas). Então, sim, faltam profissionais nas regiões Norte e Nordeste, nas periferias e em municípios rurais e remotos, especialmente médicos, que temos maior dificuldade para atrair e fixar nesses locais, o que acaba por limitar a ampliação da APS”, alerta Magnago, professora da USP.

A atenção primária à saúde é idealmente realizada por equipes com médicos de família e comunidade, que correspondem apenas a 1,7% dos profissionais brasileiros, de acordo com a Demografia Médica no Brasil de 2020, produzida pela Universidade de São Paulo (USP) e o CFM. À época, pouco mais de 7 mil médicos no país possuíam essa especialidade, que em geral é substituída por clínicos e pediatras, que juntos representam 32,7% do total de médicos titulados no Brasil, com mais de 100 mil profissionais.

Para o médico sanitarista Hêider Aurélio Pinto, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ex-coordenador do Mais Médicos, “o Brasil tem um modelo que é muito inspirado no Europeu, de estado de bem-estar social, mas tem um mercado que é inspirado no modelo estadunidense, o que causa uma bagunça completa. E a formação médica segue o modelo estadunidense. Formamos especialistas, temos pouquíssimos médicos que cuidam dos problemas mais prevalentes e isso faz com que tenhamos um sistema que precisa de muitos médicos para cuidar de um único problema”.

Neste contexto, Fabiano Guimarães defende a formação específica: “Precisamos investir na formação desde a graduação, com um currículo que realmente contemple a atenção primária à saúde, com médicos de família participando da formação de profissionais. Precisamos ter uma discussão de provimentos que passe por uma boa formação, de um acompanhamento desse profissional e que seja de longo prazo, de um suporte às residências com a garantia de bolsas, e que o serviço possa garantir a permanência dele no local”.

O diretor da SBMFC lembra que o aumento do número de médicos de família e comunidade também passa pela titulação daqueles que já atuam. Além da possibilidade da residência, que é o caminho mais convencional para se obter um título, é possível que médicos que já atuem na atenção primária por mais de 4 anos também consigam se especializar, através de comprovação teórica e prática das habilidades.

Fabiano afirma que “todos os países, como Espanha e Portugal, que fizeram uma reforma de atenção primária partiram da capacitação, treinamento e titulação dos profissionais que já atuam naquela função. Esse é um movimento importante a ser feito no Brasil. A SBMFC já começou a conversar com o Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], pensando em como pegar as 40 mil equipes de Saúde da Família, descobrir quem são os médicos não-titulados, oferecer capacitação e possibilidade da prova de título”.

Estrutura e plano de carreira
Do ponto de vista do plano de carreira, além da titulação, a discussão pública gira em torno de criar uma proposta semelhante ao que é feito com juízes e promotores, para que possam progredir com o tempo de atuação. Dessa forma, poderia ser destinado em um primeiro momento para atuar em áreas remotas e com menos fixação de profissionais, para posteriormente escolher postos de seu interesse.

Para o diretor da SBMFC, a questão principal é o quanto isso é de fato prático. “Para termos um plano de carreira nacional precisamos ter uma previsão orçamentária e definição de como isso funcionaria. Defendemos que o médico de atenção primária tenha um plano de carreira, que permita ele trabalhar sem interferências políticas e que permita ele avançar na profissão”, aponta.

A falta de estrutura nas Unidades Básicas de Saúde é outro ponto a se resolver e inclusive é um dos motivos para a dificuldade de manter médicos em áreas remotas. De acordo com o diretor da SBMFC, alguns programas do Ministério e iniciativas dos próprios municípios conseguiram melhorar as estruturas, incluindo parcerias público-privadas, mas a desigualdade no investimento pelo Brasil faz os médicos terem diversas realidades pela extensão do país.

“Temos que lutar contra a ideia de que atenção primária à saúde pode ser feita em qualquer lugar e qualquer estrutura. Realmente se consegue fazer um bom serviço com baixa densidade tecnológica e investimento em ultrassom, tomografia e ressonância. Mas um ambiente adequado é fundamental, com um bom computador e uma rede de internet, e ainda temos problemas no Brasil com isso”, conclui Guimarães.

A solução para todos os problemas que rondam a APS não é simples. Passam por uma mudança na construção das políticas públicas como um todo. De acordo com a professora Carinne Magnago, da USP, é preciso “mais investimentos e fortalecimento do SUS e da APS, bem como de seus princípios e diretrizes (universalidade, equidade, coletividade, promoção da saúde etc.); políticas de gestão do trabalho que busquem qualificar as condições laborais; processos de gestão mais democráticos, que incluam os profissionais e os usuários do SUS; e fortalecimento do trabalho em equipe multiprofissional”.

Mais Médicos deu lugar ao Médicos pelo Brasil
Criado em 2013, o programa Mais Médicos nasceu com o objetivo de ampliar o número de profissionais na atenção primária, principalmente em locais que antes não tinham a cobertura necessária de atenção primária. Foram abertas 18 mil vagas, dando preferência para médicos formados e com registro no CFM ativo. Contudo, a dificuldade em preencher as vagas gerou uma solução polêmica à época.

Através da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o governo brasileiro firmou uma parceria com o governo de Cuba, que enviou 11 mil médicos para preencher as vagas do programa. O Mais Médicos chegou à marca de 18.240 médicos atuantes, que contou também com médicos brasileiros formados no exterior.

Em sua avaliação, Hêider aponta que além do provimento de médicos ao redor do Brasil, que chegou a mais de 4 mil municípios e em todos os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), o programa era importante porque atuava em outros dois eixos: a formação e a infraestrutura. Ele explica que a ideia era melhorar as condições de trabalho e aumentar o número de vagas de médicos com formação para atuação na atenção primária:

“Havia uma distribuição desigual dos cursos de medicina, mais na capital do que no interior. No Nordeste, praticamente só no litoral. A regra do Mais Médicos era que só podia abrir faculdade de medicina em locais onde não havia nenhuma, em regiões cuja relação de vagas médicas por população era menor que 1,34 para 10 mil. O Brasil tinha uma proporção muito abaixo disso. Temos muita vaga de medicina porque temos mais de 200 milhões de habitantes”.

Para substituir o Mais Médicos, o Governo Federal anunciou em 2019 a criação do Médicos pelo Brasil. O novo programa, porém, só teve a sua primeira chamada em 2022. Atualmente, cerca de 3,3 mil profissionais já estão exercendo sua função nas UBS do país. Mas mudanças nas diretrizes e demora para o preenchimento das vagas têm sido o calcanhar de Aquiles.

A retomada do Mais Médicos foi uma das propostas da campanha do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e deve ser uma das frentes de atuação do novo ministro da Saúde a partir de 2023. Contudo, com a previsão do menor orçamento para a pasta dos últimos 10 anos, é provável que demore para ter alguma alteração concreta.

Mudanças de políticas impactam a continuidade
Os municípios que podem participar do Médicos pelo Brasil passaram por uma readequação, sendo priorizados aqueles mais vulneráveis, que também são tidos como os mais difíceis de se fixar profissionais. A cidade de Mauá, SP, é um dos que têm relatado a falta de médicos decorrente da troca de programas. Célia Bortoletto, secretária de saúde da cidade e representante regional da região do ABC do Cosems/SP, explica que o Mais Médicos destinava 44 vagas, sendo que 42 foram preenchidas ao longo do programa.

“Com a transformação para o Médicos pelo Brasil, não sei qual critério foi utilizado para dizer que alguns municípios eram ricos, e as nossas 44 vagas reduziram para 17 vagas, e apenas uma foi preenchida”, relata a secretária.

Mauá ainda possui 18 médicos remanescentes do Mais Médicos, mas conforme o programa vai passando pela transição, com contratos chegando ao fim, a prefeitura da cidade precisa realizar concursos por conta própria para suprir a demanda. No entanto, a limitação orçamentária é um entrave. Bortoletto explica que não consegue contratar profissionais especialistas em medicina da família e comunidade, o que faz com que busque pediatras e clínicos gerais, que só são atraídos por uma carga horária menor e salário maior do que é pago pelo Médicos pelo Brasil.

“Atualmente não tenho UBS sem médicos, mas fizemos da tripa coração para que isso não ocorresse. Quando entramos em janeiro de 2021 tínhamos unidades sem médicos e precisamos fazer um arranjo importante. Mas temos várias equipes sem médicos, unidades com 4 equipes e apenas 3 médicos, que ficam se revezando para dar cobertura”, explica. Dessa forma, há uma sobrecarga dos profissionais e um risco de não conseguir assistir toda a população.

A previsão do orçamento para 2023 é que apesar de ter um menor valor que o ano corrente, ele representa 27% das despesas da prefeitura. A redução na arrecadação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o provável orçamento federal para a saúde são alguns dos fatores. Célia aponta que a participação do Estado de São Paulo poderia contribuir com a atenção primária à saúde, já que hoje não há repasses nesse sentido.

“Quando o número de médicos que fazem parte da ESF é diminuído, você vê os indicadores piorando. Mortalidade infantil, cobertura vacinal, etc. O profissional médico é importante dentro da equipe e as pessoas o ouvem muito. Até pela cultura da nossa população, faz com que a equipe sem médico deixe de ser um atrativo. Ela deixa de ir até a unidade”, conclui a secretária de Saúde.

Foto: Reprodução/Futuro da Saúde